Chesterton e as condenações libertadoras

By | 19 de abril de 2016

A condenação dos primeiros hereges é, por si só, condenada como retrógrada e estreita. Mas, na verdade, foi a prova de que a Igreja se destinava a ser acolhedora e abrangente“.

G.K. Chesterton, sempre o príncipe do paradoxo, nos ensina algo aparentemente esquecido nos dias de hoje. Talvez seja mais correto dizer que é algo propositalmente deixado de lado. Desde a sua instituição, pela autoridade de Nosso Senhor Jesus Cristo, a Santa Igreja Católica vem sendo acusada por um suposto excesso de condenações, impedindo os laços entre as pessoas e limitando o conhecimento. Nada mais distante da verdade.

O que é uma heresia? O Catecismo da Igreja Católica define: “heresia é a negação pertinaz, depois de recebido o Baptismo, de alguma verdade que se deve crer com fé divina e católica, ou ainda a dúvida pertinaz acerca da mesma” (CIC §2089). Ou seja, o herege é aquele que, mesmo com todas as determinações pensadas e debatidas amplamente, mesmo com toda a doutrina inspirada e protegida por Deus, mantém, obstinadamente, a negação das mesmas. É quem se recusa a ser corrigido. Quem termina por transmitir falsa doutrina mesmo depois de ter sido corrigido pela mesma autoridade que ele diz respeitar e obedecer pela inspiração divina.

O herege se mantém alheio à autoridade da Igreja, ignorando que essa autoridade foi dada por Cristo. Essa autoridade não é algo usado levianamento. Em se tratando de doutrina e Tradição Sagrada, é uma proteção contra erros. Ao ignorar isso, o herege está se colocando acima da doutrina, logo, ele escolhe ignorar a Deus e transmitir inverdades e doutrinas que colocarão os fiéis em perigo. Ele escolhe a si próprio como julgador último e inspirado por Deus. A condenação do herege se torna uma necessidade, ou a Igreja abriria mão de sua missão e ignoraria o perigo de suas ovelhas caírem em um poço sem volta. Condenação essa que passa por um longo processo de diálogo, avisos e análise por vários especialistas. Fora as lendas sobre fogueiras e torturas, o herege é avisado que suas ações o separaram do Corpo de Cristo e de Sua Igreja. Em termos de doutrina, ele não está mais apto a falar pela Igreja.

Mas o que Chesterton queria dizer exatamente? Se a mentira é a verdade do avesso, Chesterton foi o nosso melhor guia para colocá-la de pé e mostrar que, exposta à luz da verdade, a mentira não se sustenta. Foi dito que o grande escritor inglês devia andar de pernas para o ar para poder reconhecer as coisas como elas são em nosso mundo do avesso e, dessa forma, e resolvê-las com tamanha facilidade e brilhantismo. Mas a verdade é que somos nós que vemos ao contrário. Chesterton não só via as coisas como elas são, como identificava e revirava as mentiras de longe!

Ao nos depararmos com as críticas feitas às épocas de muitas condenações, o sentimento de que aquele pode não ter sido o melhor momento da Igreja emerge. Alguns assumem uma postura defensiva, e começa uma longa discussão que pode englobar direito canônico, Tradição, teologia etc. O que Chesterton nos mostra é simples como o senso comum, e definitivo como a lógica precisa. Acima de tudo, ele nos mostra o que é verdade!, e por que essas acusações são o contrário do que se dispõe a mostrar.

O assunto em questão está no capítulo IV, Parte II, do livro “O Homem-Eterno”. O capítulo se chama “O Testemunho dos Hereges”. Chesterton nos mostra que são os próprios hereges que, por seus erros e teimosia, terminam por ajudar e provar a Verdade da Igreja. Os primeiros anos da Igreja foram um período registrado pelas primeiras grandes heresias, que  traziam um profundo pessimismo ao mundo cristão. A Igreja, então, prova que não era apenas mais um movimento que adaptava o paganismo para os seus propósitos com sua própria sobrevivência e pregação. Ela prova ser a fonte de luz em meio ao pessimismo herege.

Por que falar em heresia e sua visão pessimista do mundo? As primeiras heresias, as gnósticas (ver artigo https://www.papista.com.br/2016/03/30/gnose1/ ), indicavam um Deus distante, e a criação como produto de um demiurgo, uma emanação maligna que criou o universo em que vivemos e toda matéria. Logo, segundo eles, toda a criação, incluindo os homens, são ruins e filhos do mal, e não de Deus. É possível extrapolar esse argumento para toda heresia. Por exemplo, os hereges surgidos pouco depois dos primeiros gnósticos (gnósticos nunca realmente nos deixaram em paz), mas ainda nos primeiros séculos, traziam distorções igualmente pessimistas. Para alguns, Deus não havia realmente vindo ao mundo; ou Cristo não era Deus; ou Cristo era só divino e não veio para junto de nós totalmente homem e totalmente divino; ou o pecador não podia ser salvo, ou não deveria jamais chegar perto dos sacramentos de novo (como se eles não fossem também pecadores); ou podia ser salvo sozinho, mas de uma forma irreal e não piedosa, ou sem se saber exatamente como. Para outras, Cristo é um deus, mas não é Deus! Todas são visões pessimistas.

Reflita sobre as heresias e releia a frase de Chesterton no começo deste artigo. Além de pessimistas, são as heresias que tornam estreita a visão da salvação! São elas que tentam distorcer a Verdade, que é muito mais abrangente e piedosa! A Verdade também é muito mais otimista do que qualquer heresia. Acima de tudo, heresias nos impedem de entender que Deus, ainda que permanecendo divino, se tornou homem para sofrer e morrer como um de nós, e assim retirar o pecado do mundo. Em comum, elas têm o fato de apresentarem uma visão restritiva da salvação. Se elas fossem aceitas como verdade, aí sim, o cristianismo seria muito menos abrangente. Certamente nada tão pessimista como uma heresia pode ser acolhedor.

Ao condenar os hereges, a Igreja se mantém abrangente em sua visão e missão, e acolhedora em seu otimismo e misericórdia. A própria condenação é uma prova de que a Igreja protege suas ovelhas contra o que é retrógrado, já que são as heresias que retardam o progresso do homem em sua jornada pela salvação.

Pensemos em um exemplo tão presente em nossa cultura. A heresia da Teologia da Libertação. Com um discurso bonito e aparentemente em consonância com a Doutrina Social da Igreja, a TL introduz uma visão do pobre como começo e fim da História da Salvação. Ora, a Igreja jamais deixou de reafirmar a necessidade da caridade e do cuidado com os pobres. Leiam os artigos neste site sobre os Doutores da Igreja, por exemplo. A própria Doutrina Social da Igreja, como modernamente entendida, continua demonstrando a preocupação da Igreja com os mais necessitados, sejam eles pobres, doentes, idosos, órfãos, bebês, fetos, etc. De fato, eu nunca li um texto da TL que não fosse limitante em si mesmo. Nem me aprofundarei no fato da TL ser um “Cavalo de Tróia” marxista. Mas ainda que ela fosse apenas uma visão teológica, ela seria exatamente o que estamos discutindo: algo que esperneia quando é condenada e criticada, acusa a Igreja de ser retrógrada e fechada; mas se a Igreja adotasse suas idéias, não só a Igreja incorreria em erro, mas se limitaria enormemente em ação e visão, prejudicando seus fiéis no caminho para a salvação.

Uma igreja que não condenasse o erro seria uma igreja permissiva. Permitir a confusão é permitir que suas ovelhas sejam atacadas pela mentira ou por uma visão limitante. Concílio após concílio; documento após documento; proibição após proibição; muitos são os que repetem a ladainha da igreja das condenações, retrógrada, e fechada ao diálogo. Quando são os erros e heresias que impedem o diálogo. São as heresias que confundem teólogos antes promissores ao ponto de torná-los tão permissivos que a permissividade se torna sua missão. Se sua única missão é ser permissivo e lutar contra a Igreja, e a salvação não é mais sua luta ou objetivo, foi você que se tornou intolerante e limitado. É uma luta por uma igreja realmente retrógrada ao ponto de distorcer sua doutrina em uma busca por peneirar os fiéis e criar uma igreja fechada em si mesma. O que, por si só, dispensa a explicação sobre limitação.

Diálogo foi o que a Igreja mais fez em sua história. Mas o objetivo do diálogo não é nem uma tautologia teológica, nem o diálogo pelo diálogo. O objetivo do diálogo é se chegar à uma conclusão. No caso da teologia, se aproximar da intenção divina para a glória de Deus e salvação do homem. Isso só é possível em comunhão com a Igreja, protegida de erro doutrinal pelo Espírito Santo. Quem nunca quis diálogo, ou não aceitou a conclusão, foi o herege. Sua condenação é um alento que permite mais diálogo, mais avanço, e melhor entendimento dos desígnios de Deus.

Chesterton estava certo outra vez. É importante que todos entendam que quando somos questionados sobre as condenações da Igreja, não precisamos encontrar maneiras para defender as condenações em si. Muito menos aceitar um falso manto de vergonha. As condenações são libertadoras! Se teologicamente elas protegem a Igreja e a Doutrina dos erros, na prática, elas removem as ervas daninhas e protegem os fiéis da estagnação e do isolamento. São as condenações que asseguram uma Igreja tão acolhedora e abrangente que ainda cresce depois de mais de dois mil anos. Podemos discutir a teologia, a perspectiva bíblica, a doutrina etc. Mas não é preciso temer a palavra “condenação”, tampouco ter receio de apontar uma heresia. É o mundo que nos quer em silêncio, mas nós não fomos feitos para o mundo. Claro que não se pode chegar ao extremo de se tornar exclusivamente um caçador de heresias, que não faz mais nada a não ser exigir condenações. Tudo isso é um longo processo, que inclui o diálogo. Mas quando condenações acontecem, ou quando a heresia existe e deve ser apontada, o católico não deve temer. As condenações libertam! As heresias limitam e estreitam o caminho da salvação!

Em Cristo, sob a proteção da Virgem Maria,

um Papista.

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