Réquiem para o Senhor – A Procissão Fúnebre no Evangelho segundo São Lucas

By | 27 de setembro de 2022

In Paradisum:

“Que os anjos te levem ao paraíso
seja recebido pelos mártires na tua chegada
e te levem à cidade santa,
Jerusalém”

Essa antífona da Missa aos Fiéis Defuntos (Requiem) tem muito a ver com o que acontece no Evangelho Segundo São Lucas. Por incrível que pareça, a maior parte do Evangelho escrito por São Lucas poderia ser descrito como uma “procissão fúnebre”.

Em termos narrativos, do capítulo 9 ao 19 Jesus está a caminho de Jerusalém. São incríveis 10 capítulos que marcam nada menos que a última viagem missionária do Senhor em direção ao Seu Santo Sacrifício em Jerusalém. O começo dessa procissão é marcado pela frase (assim traduzido na versão lida na Liturgia): “Ele tomou a firme decisão de partir para Jerusalém” (Lc 9,51). Daí pra frente, o Senhor está marchando para a morte. Mais que uma marcha, uma procissão.

Perceba o contexto desse verso marcante (Lc 9,51). Ele se dá logo após a Transfiguração. São Lucas é o único evangelista que descreve o que o Senhor conversava com Moisés e Elias (que representam a Antiga Aliança, a Lei e os Profetas sendo cumpridos em Cristo, que Jesus faria “o Seu Êxodo” (τὴν ἔξοδον αὐτοῦ), ou seja, um Novo Êxodo agora cumprido e elevado na Nova Aliança. Chegara a hora de partir para cumprir a verdadeira libertação, a escravidão do pecado.

Logo em seguida, Jesus expulsa um demônio e “todos se espantam com a majestade de Deus” (Lc 9,43), uma prefiguração do que havia de acontecer em breve com a vitória do Senhor na Cruz.

Quando Jesus decide começar Sua última viagem, as palavras usadas na tradução da Liturgia são boas: “Ele tomou a firme decisão de partir para Jerusalém” (V.51). Porém, todo o verso usa uma linguagem curiosa. A sintaxe é propositalmente estranha e, como diz o grande Luke Timothy Johnson: “Bíblica”. Por que isso? Porque a frase é escrita como uma pista. Não uma “mensagem cifrada” como quem escreve algo secreto, mas algo a ser reconhecido por “quem tem ouvidos de ouvir”. No caso, para quem conhece o Antigo Testamento e percebe que São Lucas está indicando o cumprimento de algo.

Toda a frase é rica em citações e pistas. São Lucas usa a expressão ‘sympleróo’ (συμπληρόω), usada novamente por ele em Pentecostes, para indicar a “plenitude do tempo”, quando “tudo se cumpre”. No caso, Ele indica que a crucificação é mais que “quando havia chegado o tempo”, mas seria quando tudo se cumpriria.

A segunda parte é que o tempo se cumpriu para que Jesus fosse “levado ao Céu”. Novamente é uma boa tradução, embora mais interpretativa do que literal. Literalmente é “o dia de ser removido (levado) para o alto” (τῆς ἀναλήμψεως αὐτοῦ). Literalmente, quando chegaria o dia “da Sua Ascensão”.

Em termos bíblicos, a expressão para “ser levado para o alto”, análemphis (ἀνάλημφις), é um Hápax Legómenon (algo que só aparece uma vez), pois só aparece nesse verso tanto no NT quanto no AT (LXX). O que é muito interessante é que essa expressão aparece nesse contexto em um documento conhecido como “Testamento de Levi”. Esse livro é parte do material “pseudopígrafo do Antigo Testamento”, ou seja, documentos com falsa assinatura (em geral, se empresta um nome de prestígio para a obra) formado por material em Hebraico e Grego e com versão final no século II, mas amplamente usado antes de Cristo. A forma final é chamada de “Testamentos dos 12 Patriarcas”, como se fossem mensagens dos 12 patriarcas bíblicos, os filhos de Jacó-Israel que formaram as 12 tribos, uma prefiguração dos 12 apóstolos. São Paulo usa citações possivelmente tiradas dessa obra diversas vezes.

O “Testamento de Levi” é uma obra apocalíptica e profética que identifica a corrupção do sacerdócio por parte dos levitas no tempo do Segundo Templo. Para o autor (temos a versão Grega dessa parte), um novo Sumo-Sacerdote seria enviado por Deus. Unindo citações dos profetas (como Isaías), o autor descreve de maneira impressionante como tudo aconteceria em linguagem que seria amplamente refletida no Novo Testamento. Por fim, tal Novo Sacerdote seria “erguido sobre o mundo”, ele “ascenderia” sobre todos; a Glória do Senhor brilharia sobre ele; o demônio seria por ele acorrentado; seu sacerdócio se espalharia pelo mundo por todas as nações (catolicidade); ele abriria as portas do paraíso; os santos encontrariam a árvore da vida e dela comeriam seus frutos etc. Tudo isso soa familiar aos cristãos, pois vários desses temas se cumprem em perfeição em Cristo.

De certa forma, São Lucas reflete o pensamento profético e apocalíptico da sua época quando nota o cumprimento da missão do Senhor em sua procissão fúnebre até Jerusalém. Há fortes notas de uma comparação com Elias e sua assunção aos Céus (2Rs 2,10-11; Eclo 48,9; 1Mc 2,58 etc). A comparação não é só sobre Elias, mas sobre o fato de que, antes de partir, Elias transmitiu “seu espírito” a Eliseu. Da mesma forma, Jesus sopraria o Espírito sobre os apóstolos para formar o sacerdócio santo e católico que iria a todas as nações.

Também não parece por acaso que, logo em seguida, São Lucas seja o único que fala da escolha dos “70 discípulos”, um número que representa não apenas o profetismo do Senhor entre os homens (Nm 11,24-25), como a Catolicidade cumprindo a origem das outras 70 nações do mundo (Gn 10) e agora a cumprindo e renovando em Cristo.

Em seguida, ele descreve como o Senhor firma Seu propósito de ir à Jerusalém. Também é curioso que, no original, a expressão seria algo como “firma Seu rosto” ou “fixa Sua expressão”. Sim, a expressão quer dizer que o Senhor firma Seu propósito, mas há mais aí. A expressão é claramente um ‘hebraísmo’.

Nessa sequência curiosa da linguagem, essa expressão ‘tò prósopon estérisen’ (τὸ πρόσωπον ἐστήρισεν) remete ao Antigo Testamento. É um ‘hebraísmo’*, uma expressão hebraica traduzida para o Grego. Ela não só é estranha como frase isolada, mas ela é claramente uma linguagem tardia, sem precedente exato no uso do Grego convencional. Sendo um ‘hebraísmo’, ela remete claramente a passagens em que profetas eram ordenados por Deus a “fixar sua face contra” algo. Em geral, contra Jerusalém!

É nesse contexto profético da salvação prometida partindo de Jerusalém que São Lucas descreve o Senhor fixando sua face, tomando a firme decisão, contra Jerusalém. Possivelmente com contexto mesmo de julgamento. Ezequiel, especialmente, é ordenado diversas vezes a “fixar sua face contra” algo, a “firmar seu rosto como pedra”, especialmente contra Jerusalém e tudo o que a ela se relaciona (Ez 6,2; 13,17; 15,7; 21,2). Mas não só Ezequiel. Também Jeremias (Jr 21,10) e Isaías firmando seu propósito para os momentos difíceis (Is 50,7).

Tudo isso em um pequeno verso. O que mostra que há muito mais na mensagem do que se pode imaginar. O Senhor não apenas firmou Seu propósito como quem toma uma decisão e não vai mudar. Muito mais que isso, Ele fixa Seu rosto para julgar a Antiga Aliança e o mundo; Ele cumpre os profetas e começa o Novo Êxodo; Ele começa a Sua procissão fúnebre para da Sua aparente derrota retirar a maior das vitórias.

Nunca se esqueça: quando você está lendo a Bíblia, você está lendo um tesouro infinito de bênçãos. Para além de toda riqueza interpretativa que o estudo da teologia, da linguagem, do contexto histórico etc, você está lendo uma mensagem de amor que tem como objetivo te acolher no Reino de amor do Senhor. Nossa missão é proclamar esse Reino e a Majestade de Cristo num Reino que é uma família amorosa conquistada pelo Seu Sacrifício Salvífico.

Em Cristo, entregue à proteção da Virgem Maria,

um Papista

*São Lucas usará vários hebraísmos em sequência. Não é cabível tratar São Lucas como um gentio apenas para tentar indicar influência helenista no Evangelho por ele colocado no papel. Ou seu relato inspirado por Deus é muito mais próximo de um testemunho de São Paulo do que alguns querem admitir; ou, se São Lucas era mesmo um gentio, ele era um que vivia entre judeus-cristãos e dominava o AT como poucos, já que ele não só faz relações deliberadas, como usa expressões hebraicas traduzidas para o Grego como ‘pistas’ com habilidade rara.

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