Sobre o novo documento “Amoris Laetitia” (A Alegria do Amor), do Papa Francisco.
Com o documento quase todo lido, ainda que sem a toda calma e estudo possíveis, já é possível e importante fazer algumas considerações. É o que dá para ser feito por qualquer um até agora. É um livro de 265 páginas, e uma leitura “completa” só é possível em algumas semanas (quem, nesse momento, disser o contrário está mentindo ou não sabe nada de teologia e análise doutrinal). Mas foi possível pescar os pontos centrais. É fundamental passar a informação antes da contaminação pela imprensa anticlerical. Também é fundamental ser socrático em uma análise de um documento dessa importância. Tentarei ser breve e claro.
– O que é o documento? É uma “exortação apostólica” (Adhortatio Apostolica). É um documento menos solene que uma encíclica, o que não rebaixa o documento, mas dá uma pista sobre seu conteúdo e objetivo. É um tipo de documento de recomendações, conclusões sobre algo específico, e reflexões. Não proclama dogmas, não modifica doutrinas, não promulga leis. É um tipo de documento escrito na conclusão de uma reunião apostólica, como um Sínodo ou Conferência episcopal. Reflete o entendimento do Papa (e não uma decisão magisterial) sobre o que foi debatido no Sínodo, e suas recomendações. É um documento pastoral, e esse ponto não deve jamais ser esquecido ao ser analisado. O que isso quer dizer? Que é uma recomendação aos pastores (o clero) sobre como agir perante certas situações, e não um documento legalista.
– A doutrina e a teologia do documento me parecem sólidas. Nenhuma revolução! Nenhum erro doutrinário, magisterial ou canônico! Sem novidades nesses sentidos.
– o que ficou conhecido como a “solução de fórum interno”, proposto por certos bispos, popularmente definida como uma apelação ao “foro íntimo” como todo modernista gosta, foi solenemente ignorada pelo Papa. Ou seja, não há sinal de catolicismo “siga a sua consciência” na exortação. O que é ótimo.
– na página 251, ponto 321 da exortação, o Papa mais uma vez arrasa qualquer pretensão de “casamento gay” (SIC). Nesse ponto não há dúvidas! Casamento é entre um homem e uma mulher, e é uma união familiar e geradora de filhos. Sem discussão; sem choro; sem espaço para apelação!
– embora o ponto mais discutido pela mídia fosse “casamento gay” (SIC), esse não era o maior medo real (isso só era uma possibilidade na cabeça da mídia liberal). O maior medo seria o Papa dar alguma margem para o recebimento do sacramento da comunhão para os divorciados em nova relação. Eu não vi qualquer sombra disso. Não há pistas, afagos, nada! Essa seria a grande “revolução teológica e doutrinária” que alguns esperavam. Mas como eu já tinha dito a muitos sobre a má interpretação das ações do Papa Francisco (mesmo com suas declarações espontâneas às vezes um pouco atrapalhadas), tal inovação não viria, e não veio.
Voltamos ao ponto sobre o que é a exortação. É um documento pastoral, como Francisco é um Papa pastoral, e não um teólogo. Ou seja, ele tem recomendações aos seus pastores, como é sua obrigação petrina. O Papa transmite essencialmente duas coisas:
A primeira é que a Igreja não dê chances para ser vista como “a Igreja das punições”. Perceba que muitos erram em dizer que os papas querem deixar essa “igreja das punições” para trás, quando essa nunca existiu. São duas coisas diferentes! O que o Papa quer é que não se dê chance, não se dê margem para que isso seja entendido nas ações dos seus pastores. Sua Santidade quer que seus pastores realmente acolham a todos, mesmo que tenham que dizer “não” a elas em certos aspectos. Fazendo isso, a Igreja transmite a sã doutrina, ainda que pareça um tratamento duro. Isso deve ser feito com carinho. Se a Igreja nunca foi a “igreja das punições”, como alguns a pintam, ela certamente teve seus momentos ruins, e em certos momentos uma postura de “realeza”, distante, que não ajudava a corrigir ou acolher suas ovelhas. É essa postura que o Papa combate, e o faz muito bem. Chegou a hora de uma geração de pastores que não só saibam e transmitam a boa doutrina com rigor, mas também pastores que, munidos de todos os bons instrumentos, saibam conversar e fazer suas ovelhas se sentirem amadas mesmo quando não ouvem o que querem. Que elas saibam que não ouvir o que querem é bom para elas. E que isso seja ensinado com amor. Esse amor pastoral é o tema da exortação.
A segunda coisa parece ser o que alguns críticos não querem entender. O Papa dá a entender (pelo conteúdo da exortação, e não por sentimento) que deseja acabar com essa discussão insólita sobre “revoluções” que jamais acontecerão na Igreja! Ele quer focar na ação pastoral. Deixar a discussão teológica e doutrinária de lado, exatamente porque a doutrina nunca muda nem mudará, e focar no lado pastoral. Perceba que não é deixar a doutrina ou a teologia de lado, mas deixar de lado a discussão inútil sobre mudanças que jamais acontecerão. De fato, esse é um modo de ratificar a doutrina e a teologia de sempre! A mensagem é: parem de procurar cabelo em ovo! Nada disso vai mudar! Vamos falar dos aspectos pastorais do que já está mais do que definido!
Dito isso, há sim, um aspecto que incomoda na ausência de melhor teologia do Papa. Quando ele comenta sobre esse amor pastoral, ele poderia refinar sua linguagem e deixar clara a ação do pecado, e a importância de se focar nisso na pastoral. Sua ambiguidade não proposital, mas por falta de domínio de uma teologia mais sólida, se aproxima demais de ser uma diminuição do fardo do pecado nas nossas ações. Isso poderia (poderia!) continuar abrindo portas para uma pastoral “I’m OK, you’re OK”, uma pastoral “água com açúcar”, que alguns membros do clero insistem em pregar. Ou seja, o Papa não relativiza, mas também não fala certas coisas com a ênfase que poderia (e deveria) dar em certas passagens do documento.
A ação do pecado na vida dos homens é parte central de nossas vidas e da História da Salvação, que é a história da Igreja e sua missão. A linguagem da exortação, em alguns trechos, poderia ser mais firme e mais definida, para evitar que pessoas mal intencionadas a usem para diluir a ação do pecado até chegar a um simples “erro sentimental”, algo que você mesmo poderia cuidar e eliminar sem a ajuda de Deus, o que seria uma heresia. O Papa não faz isso! Nem se aproxima da heresia! Mas uma linguagem mais clara evitaria erros que certamente ainda veremos. A imprensa prova isso ao correr para tentar refletir seus próprios erros e visão ultra-liberal sobre o documento, usando uma ambiguidade que, ainda que não exista de fato, poderia ser totalmente eliminada com uma linguagem mais firme. Tal visão midática não é a do documento! Mas isso poderia ser evitado com uma linguagem teologicamente mais bem definida.
Outro ponto que serve para o futuro. A imprensa e os liberais não se lembrarão da exortação com o carinho e respeito que ela merece. Guardadas as devidas proporções, ela é a “Humanae Vitae” do Papa Francisco. Por quê? Porque ela é contracultural! Ela diz NÃO ao modernismo e aos que acreditam que doutrinas são ditadas pelo calendário, e não por princípios absolutos vindos de Deus e transmitidos por Sua Igreja. Ela é tudo o que ultra-liberais não queriam ler. Por outro lado, ela é tudo o que ultra-radicais-tradicionalistas também não queriam ler, já que não tem condenações, excomunhões, e a proibição do diálogo. Se esses dois lados não gostarem, é um bom sinal. Todo defensor da ortodoxia tem que ser totalmente a favor da doutrina ser reforçada e obrigatoriamente transmitida pelo clero e pelos leigos. Isso já foi feito e sempre será feito! A exortação deixa isso claro. Se for descumprido, o faremos de novo! Apenas não precisamos referendar Trento todos os dias em novos documentos. Já o fizemos antes, e fazemos todos os dias em ações! A ortodoxia continua vencendo. O documento apenas encontra novas formas pastorais de relação, para que ninguém seja alienado do carinho maternal da Igreja, ainda que as pessoas ouçam que não podem fazer tudo o que querem, pois a Igreja é Mater et Magistra, Mãe e Mestra.
Na exortação, a Igreja é lembrada novamente como um hospital, e não uma corte da lei, como disse São João Crisóstomo ainda no século IV (ver artigo https://www.papista.com.br/2016/01/05/crisostomo/ ). Se o documento segue o que o citado Doutor da Igreja já ensinou; segue a Doutrina Sagrada, o Magistério e a Tradição; está bom para quem a defende em sua ortodoxia! O que certamente é bom para a Igreja e a Glória de Deus. Todos podem respirar tranquilos! Nenhum dogma foi arranhado, nenhuma doutrina foi violada! O Espírito Santo não cochila!
Que a Alegria do Amor (Amoris Laetitia) nos ilumine sempre!
Em Cristo, sob a proteção da Virgem Maria,
um Papista!
Meu irmão, queria ler sua visão sobre todo o problema que se desenrolou em torno desta exortação apostólica. Você disse que ainda não havia estudado a fundo a exortação, mas que dando aquela lida comum não via nenhum problema na doutrina, por que então toda essa “briga” em relação aos casais em segunda união? Estão certos? Enfim, gosto muito da sua visão de fé e fidelidade à Igreja. Obrigado
Obrigado, irmão. Não há nenhum erro ou abertura para isso no documento. O que aconteceu, infelizmente, é normal na vida da Igreja. Sempre que um documento como esse é publicado, algumas pessoas correm para tentar encontrar “brechas” para pregar o erro. A idéia de que o Papa permite essas brechas é um erro. Fizeram isso com Bento XVI e São João Paulo II também. Sem nem falar do CVII. O próprio Cardeal Muller, prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé atestou que o documento não contém erros. O problema, ao meu ver, foi como toda essa discussão foi conduzida. Tornar pública não é o correto, como fizeram muitos membros da cúria. O que começa mal, termina mal. Tenhamos fé de que cada diocese e conferência episcopal terá a ajuda do Espírito Santo para cuidar dos problemas. É mais fácil que eles cuidem do que pedir que o Papa cuide de tudo. Essa é uma mudança que tem sido positiva nos últimos tempos, mesmo com o medo de alguns. Rezemos pelo Papa e pela ortodoxia, mesmo com tropeços. Fique com Deus.
Olá, Papista.
Devido as várias discussões com relação a esse documento, entendo que realmente existam muitas pessoas que o interpretam de acordo com a disciplina e doutrina perene da Igreja. Mas o maior problema é que uma das pessoas que o interpretaram dando abertura para a recepção dos sacramentos aos divorciados foi o próprio Papa Francisco, quando enviou uma carta datada do dia 5 de setembro de 2016, respondendo a um documento elaborado pelos Bispos Argentinos, chamado “Criterios básicos para la aplicación del capítulo VIII de Amoris laetitia” onde dizia que o texto “é muito bom e explicita claramente o significado do capítulo VIII de Amoris Laetitia. Não há outras interpretações. E tenho certeza de que fará muito bem. Que o Senhor os recompense por esse esforço de caridade pastoral”. Infelizmente o referido texto (disponível aqui https://w2.vatican.va/content/francesco/es/letters/2016/documents/papa-francesco_20160905_regione-pastorale-buenos-aires.html) dá a possibilidade aos divorciados recasados de receberem os sacramentos em casos bastante específicos. Gostaria de ver a opinião de alguém como você, que defende o Papa ao mesmo tempo que não abre mão da fé católica, afinal essa carta do santo padre, pra mim, é perturbadora. Seu trabalho de defesa do papa é muito importante e lhe agradeço muito por isso. Fique com Deus!
Olá, Rodrigo. Muito obrigado pelo seu comentário e pela confiança. Eu ainda tenho que escrever algo mais detalhado sobre essa confusão, mas vale notar que o aparente aval do Papa NÃO é sobre comunhão para divorciados. É específico sobre uma “solução pastoral”, um caminho para “distinção adequada e de discernimento”. O que isso tudo quer dizer? Quer dizer que a solução pastoral NÃO é doutrinal. A doutrina permanece intacta. Como a imensa maioria dos atos do Papa, ele mesmo um ‘papa pastoral’, e não um teólogo, a ênfase aqui é em crescer um trabalho nas comunidades para que as pessoas em situação irregular sejam recebidas para um convívio misericordioso nas comunidades. Para que, mesmo sem poder comungar, ele não se sinta excluído. A carta do papa pede uma análise ‘caso a caso’, com acompanhamento pastoral. A mesma carta é clara em dizer que o caminho do discernimento NÃO é necessariamente sobre voltar a comungar, mas sobre fazer a pessoa se sentir parte da comunidade.
Enfim, eu vou falar mais longamente e melhor sobre isso depois. Mas não vejo razão para que se tema uma revolução doutrinal. Isso nem possível é.
Fique com Deus.
Muito obrigado por tamanha rapidez na resposta. Mas ainda permanecem as dúvidas, pois vemos que essa solução pastoral, presente no item 6 desse mesmo documento, libera claramente a comunhão para recasados. O ponto trata daqueles casais que não vivem a continência citada no ponto 5 e também deixa claro, logo no início, que não se trata de nulidade matrimonial. Como podemos ver:
6) En otras circunstancias más complejas, y cuando no se pudo obtener una declaración de nulidad, la opción mencionada puede no ser de hecho factible. No obstante, igualmente es posible un camino de discernimiento. Si se llega a reconocer que, en un caso concreto, hay limitaciones que atenúan la responsabilidad y la culpabilidad (cf. 301-302), particularmente cuando una persona considere que caería en una ulterior falta dañando a los hijos de la nueva unión, Amoris laetitia abre la posibilidad del acceso a los sacramentos de la Reconciliación y la Eucaristía (cf. notas 336 y 351). Estos a su vez disponen a la persona a seguir madurando y creciendo con la fuerza de la gracia.
Sendo assim, como a doutrina permaneceria intacta se a pastoral adotada vai contra a mesma?
Eu preciso examinar o documento e a resposta com calma antes de seguir com a análise. Seria irresponsável da minha parte te responder sem o cuidado que você e o assunto merecem. Mas eu creio que a resposta do Papa não pode ser considerada uma autorização geral e irrestrita do documento. Creio ser pontual na parte pastoral, refletindo sobre a possibilidade de uma análise criteriosa de cada caso, sem necessariamente chegar à comunhão. Obrigado de novo. Eu vou estudar depois com calma e escrever melhor sobre isso. Pessoalmente, eu não veria nessa resposta algo que contraria o que o Papa mesmo já atestou outras vezes, a indissolubilidade do casamento, como podemos ver nesse artigo (http://www.catholicworldreport.com/2016/01/23/francis-affirms-indissolubility-of-marriage-objectivity-of-annulment-conditions/) e em outros.
Fique com Deus.