O Livro de Daniel, o rei Mago Baltasar e troca de nomes na Bíblia.

By | 13 de setembro de 2021

Uma amiga do apostolado, atenta às leituras da Liturgia, perguntou sobre Daniel ter recebido o nome de Baltasar (ou Baltazar) e se poderia haver ligação com um dos “três reis magos” que visitaram o Senhor. A pergunta puxa um nó tão complicado quanto irresistível para o comentarista bíblico. Vou tentar desfazer o nó. Pode ficar um pouco “técnica” demais a explicação, mas vou tentar simplificar ao máximo e acho que vai valer a pena.

Antes de tudo, vale falar sobre a troca de nomes na Bíblia. Troca de nomes, como esperado, são repletas de significado. O principal é a troca de nome feita por Deus. Quando Deus troca o nome de alguém, é um sinal de bênção e da importância da pessoa na História da Salvação pois, fundamentalmente, são sinais da Aliança Divina. Como Jacó, que passa a se chamar Israel. Toda a sua descendência carregaria o seu nome como um povo unido ao redor da família, uma prefiguração da Igreja Católica e a salvação pela formação da família divina.

Alguns nomes são trocados, mas sem uma determinação divina inédita, mas apenas o uso de um nome existente em outra língua, como Saulo de Tarso que, após a visão do Senhor, passa a ser chamado pelo seu nome de cidadão romano, Paulo (Paulus). Há um sentido de mudança, mas o nome já existia.

Da mesma forma, vemos nomes como o do Evangelista Marcos que, em sua língua original, era chamado João. João é um nome hebraico comum (talvez o mais comum). Seu nome romano era Marcos (talvez o mais comum). Note que algumas traduções falam em “João, que tem por sobrenome Marcos”. Isso é um erro! Não era o seu sobrenome. A frase é “João, também chamado de Marcos” (At 12,12 etc), pois Marcos era seu nome romano.

Outras mudanças de nome são propositalmente contrárias ao primeiro sentido, o sentida da Aliança. Quando pagãos mudam o nome de alguém, isso é um sinal de (tentativa de) anulação da sua relação de Aliança com Deus. É uma tentativa de fazer uma aliança satânica com falsos deuses. Isso se tornaria um problema quando muitos judeus, ou mesmo cristãos, aceitariam abandonar seus nomes com raízes no amor ao Deus verdadeiro por nomes que sinalizam a idolatria.

O problema é que, com o passar do tempo, as pessoas perdem as suas raízes; perdem a sua fé como povo ou nação; e não só não recusam nomes idólatras, como se acostumam e passam o costume adiante. Em um tempo em que se inventam nomes ou adaptam nomes de personagens duvidosos, isso se tornou quase uma rotina. Antes, países cristãos tinham listas de nomes aceitos. Hoje, vale tudo. É uma digressão, quase um desabafo, mas vale. No caso bíblico, era um sinal de alerta ignorado. Quando alguém recebia um nome de outro povo, ele sabia que era um teste e que deveria fazer algo.

Com isso, chegamos ao livro de Daniel. Logo no começo do livro, Daniel e seus amigos estão na Babilônia. O livro de Daniel se passa já durante a primeira deportação de Judá para a Babilônia. O profeta está entre os deportados. Assim como José do Egito antes, ele se destaca na corte do rei por seus dons proféticos. Embora, ao contrário de José do Egito, isso nem sempre termine bem para ele.

O livro de Daniel é “trilíngue”. Ao menos nossas fontes o são. Parte do livro está em Hebraico (Dn 1,1–2,4a; 8,1–12,13); a maior parte em Aramaico (Dn 2,4b–7,28); e parte em Grego (Dn 3,1-68; 13-14). Complica ainda mais se soubermos que a fonte grega mais aceita pela Igreja não era a LXX (popularmente conhecida como a “Septuaginta”), mas a tradução de Teodócio. Ou seja, o livro de Daniel começa em Hebraico, passa pelo Aramaico (com um trecho em Grego no meio), volta ao Hebraico e termina em Grego.

Tudo isso ajuda a explicar uma certa confusão com nomes. Chamar de “certa confusão”, digamos assim, é um eufemismo gentil. 🙂

No original, o rei muda o nome de Daniel para “Belteshatstsar” (בֵּלְטְשַׁאצַּר). Esse complicado nome é de origem debatida. É provável que sua origem seja do Acadiano “Balâṭsu-uṣur” (que significa “proteja a vida dele”) ou “Balâṭ-šar-uṣur” (que significa “proteja a vida do príncipe”, sendo essa variação mais provável para o nome do príncipe regente em Dn 5). A vocalização do nome em Hebraico teria derivado para “Belîṭšâṣâr”. Considerando que o nome do rei seguinte seria muito parecido, “Bêlšaṣṣar”, as traduções gregas terminaram com tudo traduzido como “Baltasar” (Βαλτασαρ).

Daí a versão para “Balthasar” em Latim e “Baltasar” em Português foi um pulo. A tradução do Padre Matos Soares faz essa tradução automática e crava “Baltasar”. Outras “abrasileiram” para Baltazar. O problema é que, no original, esses nomes não são iguais. Essa tradução torna o nome dado a Daniel igual ao nome do próximo rei (Dn 5), o que é um erro. A nova tradução lançada pela editora da CNBB corretamente destaca a diferença nos nomes: Baltassar e Baltazar. Não faz sentido algum igualar esses nomes, mas, já foi feito.

O que realmente importa é entender o que vimos no começo: nomes têm significados! Note sempre as particulas “El” e “Yah” (e variantes), que indicam nomes que são, por si só, louvor a Deus. Os nomes Hebraicos são:

  • Daniel (Dani’el), que significa “Deus é meu juiz” (por vezes tratado como “o juiz de Deus”, como alguém que vem trazer o julgamento de Deus, como um anjo etc)
  • Ananias ou Hananias (no original chănanyâh. Note o “yah”, que é um louvor a Yahweh), que significa “Deus favoreceu” ou “Deus deu Graça” (por vezes, tratado como “a Graça de Deus”).
  • Misael ou Mishael (mı̂yshâ’êl), que significa literalmente “quem é como Deus é”. Talvez melhor “que carrega a semelhança de Deus”.
  • Azarias (‛ăzaryâh), que significa “Deus ajudou” ou “Deus, meu socorro”.

Em todos esses nomes há uma partícula indicando louvor a Deus (el ou yah). Esse é o ponto do texto!

Inconformado com a adoração ao Deus verdadeiro, e não aos falsos deuses babilônicos, Nabucodonosor troca seus nomes para nomes que, por sua vez, indiquem louvor aos falsos deuses. Todos os nomes contém citação direta a “Bel” ou “Nego” (Nebu ou Nabu). Bel era um título equivalente a “Senhor” dado ao Deus verdadeiro. Porém, era o título de um falso deus babilônico que veremos no final do livro, quando Daniel confronta os sacerdotes de Bel (Dn 14,1-22). O nome do falso deus era Marduk, a mais alta divindade babilônica. Os nomes de alguns amigos de Daniel são uma corruptela de Marduk (que, confesso, não sei explicar a linhagem linguística precisa). Nabu, ou Nego, era um falso deus filho de Marduk.

Ou seja, os nomes dos amigos, que antes traziam a adoração ao Deus verdadeiro, agora carregarão o peso da idolatria como forma de força-los a abandonar a fé. Os nomes são:

  • Daniel, como vimos, passa a se chamar “Belteshatstsar” que significa “proteja a vida dele”. Em contexto, seria algo como “proteja a vida de Bel”, o falso senhor.
  • Ananias passa a se chamar Sidrac (shadrak) que, ao pé da letra, provavelmente era algo como “real”, mas era uma corruptela de Marduk, o falso senhor. Possivelmente, algo simbólico de “favorecido” ou “o deus-sol”.
  • Misael ou Mishael passa a se chamar Misac (mêyshak), que é o mais difícil de identificar. Talvez uma deusa babilônica chamada “Shak”, uma deusa da beleza. Alguns comentaristas vêem isso simbolicamente demonstrando que os homens “amam mais o prazer do que amam a Deus” (2Tm 3,4).
  • Azarias passa a se chamar Abdenago (‛ăbêd negô). Esse é um nome bem curioso. Ao pé da letra, é “servo de Nebo”, o falso deus. Por outro lado, é possível que signifique “servo da luz brilhante”, que para eles seria entendido como “servo de Lúcifer”, um castigo terrível para o jovem Azarias.

Enfim, a história desses jovens mostra que eles resistiram a tudo e foram salvos por Deus por negar a idolatria. Mas fica um alerta sobre nomes e como nós vivemos títulos e nomes mais do que vivemos a Deus e a Ele louvamos com toda a nossa vida.

Quanto ao Baltasar, um dos reis magos? Bem, esse não tem nada com isso.

Como eu disse em uma postagem específica sobre os Reis Magos, os nomes dos Reis Magos foram dados pela tradição da Igreja. Originalmente, o nome de Baltasar era “Bithisarea”, que pode significar algo como “Deus manifesta o Rei” (ou o Reino?). Existem outras teorias, como “aquele que guarda o tesouro”, mas essa é uma possibilidade mais mundana para o nome que eventualmente foi igualado com Baltasar.

A tradição não é sempre clara sobre a sua origem. Na maioria das vezes, ele é tratado como um rei vindo de uma região da Arábia ou, mais comumente, da Etiópia.

O que é importante é que Baltasar, o Rei Mago, Santo da Igreja Católica, simboliza o cumprimento de profecias, como o Salmo 72(71), que fala dos reis se ajoelhando perante o Senhor”, ou a profecia de Isaías (Is 60,1-6), que fala dos reis que trariam ouro e incenso. No fundo, Baltasar e os outros representam a Catolicidade da mensagem divina, a união de todos os povos sob a Igreja Católica, a família divina. Ut unum sint!

Se foi o plano de Deus que nós descobríssemos que o Santo Rei Mago seria conhecido como Baltasar como um sinal da derrota da Babilônia, ou sua conversão, eu não sei. Pode ser esticar demais a interpretação, mas não escapa à imaginação.

Que tenhamos a fé de São Daniel e seus três amigos, que levavam em si mesmo o nome de Deus e em tudo O adoravam. Que pensemos em refletir o amor a Deus em tudo, inclusive nos nomes dos nossos filhos e em tudo o que for possível. E que São Baltasar, rei mago que se ajoelhou perante o Senhor, rogue por nós.

Em Cristo, entregue à proteção da Virgem Maria,

um Papista

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