Parte 2 – alguém já foi pro inferno? Alguém vai? Quem e quantos se salvam?
Nós vimos o que é o inferno, o entendimento cristão sobre ele, suas bases, o senso comum sobre o assunto e suas implicações. Neste artigo, veremos um pouco mais sobre as bases (Tradição) e como o desenvolvimento das mesmas nos trouxe diferentes interpretações, mas apenas uma verdade.
Como vimos antes, o homem sempre pensou em Deus. Do momento em que ele pensa em Deus, ele pensa nas consequências que isso traz para sua vida. Aqui a modernidade tenta dizer que há um lado bom e outro ruim. É um erro. Só há lado bom. O que ela chama de lado ruim é o fardo que se carrega na caminhada para algo melhor. Assim como nós suamos para ganhar o pão de cada dia, temos que pensar quão mais difícil é a luta para melhorar nossa natureza manchada pelos nossos pecados. Assim como o resultado do trabalho honesto é a alegria, o resultado da boa luta espiritual só pode ser bom. Mas o esforço em si, ou, francamente, apenas o fato de lançar um olhar honesto sobre si mesmo e idenfiticar seus erros, vira algo ‘negativo’ para uma modernidade que anseia pela facilidade do escapismo mais juvenil.
O inferno é o corolário de nossas escolhas e falhas. Algo assim sempre intrigou o homem, desde o dia em que ele se percebeu insignificante, porém com infinita dignidade vinda de Deus. Nos primeiros séculos depois de Cristo, na chamada “Era Patrística”, os Pais da Igreja debatiam amplamente essa questão. O inferno, segundo alguns, seria não só um estado da pessoa, mas realmente um lugar, já que teria que ser um lugar não tocado pelo amor de Deus. Os ortodoxos, embora se baseiem exclusivamente na palavra dos Pais da Igreja para definir sua teologia (Teologia Apofática), negam a existência desse lugar não tocado por Deus. Para eles, o inferno é um lugar em que o homem que nega a Deus sofre exatamente pela presença divina. A Igreja Católica, por outro lado, entende que a presença de Deus jamais seria uma tortura, mesmo para quem escolheu ignorá-lo. E que, ou o lugar escolhido não tem a presença de Deus, ou o inferno é apenas o estado dos que assim escolheram passar a eternidade.
Vários Pais da Igreja dão seu testemunho ainda no século II sobre a existência do inferno. Santo Inácio de Antioquia fala sobre isso ao comentar que os corruptores da família não herdarão o reino de Deus, e serão atirados no fogo eterno (Carta aos Efésios 16, 1-2). Assim como outros grandes teólogos e escritores já naquela época.
Orígenes foi talvez o primeiro grande teólogo a realmente se debruçar sobre o assunto da salvação e o inferno, e buscar uma interpretação teológica. De um modo inegavelmente bonito, Orígenes vê o amor de Deus conquistando a tudo, até mesmo o diabo, antes do julgamento final. Nesse caso, todos seriam salvos (universalismo trinitário). Essa restauração ao nosso estado de antes do pecado original é chamada de ‘apocatastasis‘ (Apokatastasis). Ou seja, o entendimento de que todos serão salvos. Isso implica, obviamente, que o inferno está vazio, e assim ficará. Pela lógica, significaria que o inferno não é um perigo. Mais além: se, no final de tudo, Deus conseguirá demonstrar seu amor, e conquistar a todos para que reneguem seus pecados e aceitem sua salvação, o inferno não existe na prática. O problema, percebido ainda na Era Patrística, é que quem talvez mais fale sobre o inferno na Bíblia é exatamente Jesus Cristo. Em várias passagens, Cristo adverte sobre o inferno e a possibilidade de se escolher passar a eternidade desligado do Pai (Mc 9,47; Mt 7,13 e mais diretamente em Mt 25,46). Logo, se Deus nos diz que o inferno existe, e é uma possibilidade real, a doutrina não pode contrariá-lo. Esse é o entendimento da Igreja.
Santo Agostinho tinha uma visão clara, embora hoje seja vista como ‘pessimista’. Ele acreditava que poucos se salvariam (falarei sobre esse ponto em outra postagem). Uma visão compartilhada por Santo Tomás de Aquino.
Curiosamente, é nos séculos XIX e XX, com o ressurgimento do Tomismo como fonte primária de interpretação teológica, e com a patrística se juntando a essa base no chamado ‘neo-tomismo’, que mais e mais pessoas se distanciaram da posição de Santo Tomás, e abraçaram a apocatastasis, num universalismo que se quer abrangente, mas que é mesmo intransigente. É claramente uma contradição! Não se pode usar o Tomismo para ser universalista. Além dessa contradição universalista ser uma doutrina muitas vezes carregada de um apelo barato à emoção. Algo que o modernismo faz tão bem. No fim das contas, é como se houvesse gente infiltrada entre os tomistas sérios.
Entra em cena o famoso teólogo protestante Karl Barth. Barth, ao contrário de seus colegas rigoristas, abraça a salvação para todos. Não é de se espantar que os grandes teólogos do mundo tenham, eles sim, se espantado com isso. Barth era um teólogo sério e de grande profundidade no pensar, como visto em seus escritos. Era algo a se estudar.
Quem, por fim, parece pegar todo esse questionamento e trazer a síntese com correção é, sem dúvida, o grande Hans Urs von Balthasar. Em outra de suas obras-primas, “Was Dürfen wir Hoffen?” (versão traduzida para o inglês “Dare We Hope That All Men Be Saved?” Algo como “Podemos ousar ter a esperança de que todos serão salvos?”), von Balthasar, creio eu, corrige e resume perfeitamente a questão. Ele afirma que é impossível fugir da realidade do julgamento final, um dos pilares do cristianismo. Se lidamos com um julgamente, lidamos com a possibilidade de condenação. Porém, nem Cristo, nem sua Igreja, jamais declararam que alguém tivesse sido condenado ao inferno. Nem Judas! Ou seja, é possível que, nesse momento, todos rejeitem seus pecados e aceitem o amor de Deus e Cristo como seu salvador. Logo, o inferno existe. Nós podemos sim, ser condenados, por nossa escolha, à eternidade sem comunhão com Deus. Mas, desligados da natureza divina como nós somos; alheios como estamos hoje da vontade de Deus; nós não sabemos o que acontece, e podemos sim, ter a esperança de que todos serão salvos.
Não vejo nenhum impedimento ao entendimento de von Balthasar. Se nunca foi afirmado que alguém foi condenado, é digno ter esperança de que o amor de Deus pode conquistar até mesmo os piores fascínoras; os mais duros ateus; quem nunca se importou com isso; terríveis pecadores como nós; e salvar a todos. Não parece provável, mas a esperança disso não é ruim. Só não pode have dúvidas de que é possível, também, escolher a condenação. E provável que muitos o façam desde sempre!
Até lá, rezemos para que todos aceitem a Graça de Deus, e que um dia nos encontremos no paraíso.
Em Cristo, entregue à proteção da Virgem Maria,
um Papista!