Contra o Luciferianismo

By | 10 de setembro de 2018

Lúcifer é tradicionalmente o nome dado a Satanás. Nas Escrituras, porém, esse nome não existe. O nome é uma adaptação simbólica de uma tradução bíblica. Em ‘Is 14,12‘ é dito: “Como você caiu do céu, estrela da manhã, filho da aurora![…]”. Em Hebraico, a ‘estrela da manhã’ é ‘Heylel‘ (הֵילֵל). Essa palavra foi traduzida por São Jerônimo como ‘lucifer’, que significa exatamente essa estrela brilhante da manhã, a estrela d’alva. Note que São Jerônimo não traduz como um nome próprio de uma pessoa, mas como a palavra que descreve a estrela de luz.

Apenas bem mais tarde essa palavra começaria a ter o significado do nome de Satanás atrelado a ela, pois Isaías fala da ousadia de quem deseja tomar o lugar de Deus (especialmente quando se lê ‘Is 14,14‘). Feito isso, foi questão de se voltar até essa palavra, lucifer, e torná-la um nome próprio. De fato, essa palavra só seria traduzida como Lúcifer (o nome próprio de Satanás) na versão ‘King James Version’ (KJV), a mais popular tradução protestante da Bíblia.

Inicialmente tido como uma referência a um rei babilônico, depois da KJV, interpretar e traduzir a passagem de ‘Is 14,12‘ se referindo a Satanás se tornou razoavelmente comum em certos círculos. Antes disso, no entanto, a Igreja Católica jamais traduziu dessa forma. Os Pais da Igreja não usavam o nome Lúcifer para se referir a Satanás. Alguns autores afirmam que os Pais mais tardios usavam como uma expressão para simbolizar a queda de Satanás como uma estrela cadente, alguém que foi da grandeza do seu brilho como o grande anjo para se tornar o maior demônio (Petavius, De Angelis, III, iii, 4).

De fato, havia um conhecido Lúcifer entre os mais famosos Pais da Igreja. Lúcifer de Cagliari (Lúcifer Calaritano) foi bispo de Cagliari, na Sardenha. Sua história é controversa pela briga entre algumas fontes e até mesmo sobre o seu legado. Mas uma parte dela está além de qualquer disputa, pois temos escritos como o de São Jerônimo, ‘Diálogo Conta os Luciferianos‘, que está além de qualquer controvérsia.

O que sabemos sobre Lúcifer de Cagliari e o movimento que dele adveio, a partir de São Jerônimo e outros, é que ele foi um dos mais brilhantes defensores da ortodoxia em dado momento. Em sua época (sabe-se apenas que ele morreu em 370 ou 371AD), o Arianismo era o grande inimigo da ortodoxia católica. O Arianismo negava a divindade de Cristo. Para Arius, Cristo não era da mesma essência, natureza ou substância do Pai. Essa heresia terrível duraria por muito tempo e faria enorme estrago, pois muitos bispos aderiram a ela. O famoso Concílio de Nicéia foi convocado exatamente para combater essa idéia e unificar a doutrina.

Durante alguns anos, bispos arianos se uniriam entre si ou mesmo com ajuda do governo secular (o que fazia deles muito poderosos) e afastariam bispos ortodoxos e santos. Um desses foi o grande Santo Atanásio, conhecido como pilar da ortodoxia do oriente e reverenciado por toda a cristandade. Lúcifer de Cagliari foi o grande defensor de Atanásio no Concílio de Milão (355AD). Eviado pelo Papa Libério, Lúcifer foi até o imperador Constâncio II (um apoiador do arianismo) para impedir que sua trama com os bispos arianos exilasse em definitivo Santo Atanásio. Segundo alguns autores, sem a apaixonada defesa de Lúcifer contra os Arianos, Santo Atanásio teria sido exilado ou morto. Bispos arianos foram finalmente afastados ou exilados.

Juliano, o Apóstata, sucedeu Constâncio II e permitiu a volta de muitos bispos arianos. O que acontece em seguida é um momento fundamental para um estudo da ortodoxia na Igreja. Se para uns parece mero movimento político, na verdade, envolve história e teologia.

Quando os bispos arianos começam a voltar, muitos se arrependeram. Daí começa um processo para separar quem foi atuante como Ariano, quem foi cúmplice, e quem, embora tenha sido pessoalmente ariano, não atuou. Separar o joio do trigo é um mandato que a Igreja obedece. Como tal, mesmo um defensor intransigentes da ortodoxia, como Santo Atanásio, participa do processo e defende que os bispos que participaram ativamente, e se arrependeram, poderiam voltar e ser perdoados, embora sem ocupar posição eclesiástica. Em outras palavras, eles poderiam receber os Sacramentos e participar da vida na Igreja como fiéis, não mais como sacerdotes ou bispos. Já os que haviam sido arianos, mas não houvessem participado ativamente de qualquer movimento, poderiam permanecer em suas posições eclesiásticas.

Lúcifer não aceitou. Segundo ele, nenhum envolvido direta ou indiretamente com o Arianismo deveria ser perdoado. Aparentemente, ele pregava um expurgo não criterioso, o que teria aborrecido Santo Atanásio. Em resposta, Lúcifer atacou Atanásio e todos os que ele antes admirava. Eles não estariam respondendo com a força que ele via necessária.

São Jerônimo escreveu a sua obra ‘Altercatio Luciferiani et orthodoxi’, ‘Disputa contra os Luciferianos sobre a Ortodoxia’ (também chamdo de ‘Diálogo Contra Luciferianos’, nome aqui usado) para responder às afirmações dos seguidores de Lúcifer. Começando a sua obra com um diálogo e depois respondendo a pontos específicos (um formato baseado na antiga retórica grega e que, adaptado para a pregação cristã, teria enorme influência nas ‘quaestiones disputatae’ da Escolástica medieval). Outro aspecto um tanto ignorado da obra de São Jerônimo não é apenas a influência da grande retórica grega e de autores romanos, mas a sua admiração óbvia pelo gênero da sátira. Tal aspecto deveria sempre ser assumido quando se lê São Jerônimo, especialmente as partes em que ele parece menos tolerante. Como isso não vem ao caso agora, mais sobre isso em um artigo futuro.

Em sua importante obra contra os discípulos do bispo Lúcifer, São Jerônimo começa dialogando sobre a diferença entre o pecador que se arrepende e o que se mantém no erro. Uma distinção clara que nos chama à auto-crítica, pois todos somos pecadores em busca do perdão de Deus (Rm 3,23). Não há um só justo (Rm 3,10) e todos estamos perdidos sem o nosso Pastor eterno (Is 53,6).

O grande autor e tradutor das Escrituras não deixa de diferenciar o peso do pecado dos sacerdotes e os pecados dos leigos. Porém, o arrependimento e o perdão, ainda assim, são parte do mandato divino da Igreja. Entre os pontos contestados há uma idéia vinda de Lúcifer sobre um novo batismo. É impossível saber exatamente os pontos levantados pelos Luciferianos, pois seus documentos se perderam quase completamente, mas, de acordo com as palavras de São Jerônimo, os discípulos de Lúcifer insistiam que, se tanto, os ex-arianos deveriam ser re-batizados. Algo como começar do zero. São Jerônimo, então, cita desde São Cipriano e sua luta contra um batismo herético, até acontecimentos similares de hereges que se arrependeram desde os tempos do apóstolo São João (alguns grupos mal temos notícia). Segundo Jerônimo, nenhum desses, mesmo os que desafiaram o apóstolo, tiveram que passar por algo assim. Uma vez batizado, a marca do Sacramento do Batismo não se perde, pois esse é o sinal da Aliança inquebrável com o Senhor. Essa seria a base para a possbilidade do arrependimento e da volta do fiel para a família de Cristo.

A demanda de Lúcifer de Cagliari por um expurgo sem perdão – até mesmo para os santos que reconheceram os direitos e a marca do Batismo nos hereges arrependidos – não foi um caso isolado. Tal exigência aconteceu antes e depois (os Donatistas, por exemplo, combatidos da mesma maneira por Santo Agostinho). Somos chamados pelo Senhor a viver na terra o exemplo de Deus. Ele que separa o joio do trigo (Mt 13,24-30) nos chama a fazer o mesmo. Tal ordem não pode ser ignorada pela Igreja. Tal separação é criteriosa e demanda ao mesmo tempo coragem e misericórdia. Coragem para punir os que escolhem a separação, seja por atos ou palavras, e misericórdia para com os pecadores arrependidos que aceitam o caminho do Senhor.

Muitas vezes na história da Igreja, a tentação de pecar por excesso existiu. Não são poucos os que gritam que é preferível que alguns bons sejam punidos para que se proteja uma maioria. Estamos vivendo um caso assim nos nossos dias. Diante do terrível e inadmissível caso de abuso sexual e acobertamento supostamente feito por alguns bispos, muitos pedem expurgo e punições sem perdão mesmo para quem não se tem certeza da culpa. Ou mesmo para quem pode ter se calado e se arrependeu; ou para quem foi avisado, mas não sabia mais do que ouvido em denúncia (por vezes anônimas).

Como em todos os momentos da história, a Igreja e os fiéis precisam de coragem e misericórdia. Coragem para investigar e punir com toda a força possível, nas esferas eclesiástica e secular, os que praticaram atos abomináveis e os que sabidamente os protegeram. Mas é preciso, também, misericórdia com os que confiaram em amigos ou foram lentos em investigar e hoje se arrependem. É preciso separar o joio do trigo: punir os maus e ser piedoso com os arrependidos. Aos sacerdotes abusadores, nenhum perdão a não ser o que o Senhor guarde a eles. Que sejam expulsos e punidos na Igreja e no mundo. Para os outros é preciso que uma investigação diga qual foi realmente a sua participação; sua intenção; e sua culpa.

Hoje, muitos gritam que todos os bispos, e até mesmo o Papa, deveriam renunciar ou ser expulsos e punidos. Mesmo sem evidências. Assim como Lúcifer, alguns acham que todos eles estão irreparavelmente estragados e cortados da Aliança divina por aproximação. Ou pior, por terem sido citados, não importa se for injustiça ou mentira.

Lúcifer de Cagliari é venerado por alguns (especialmente na cidade de Cagliari) como São Lúcifer!  Assim como outros, ele é considerado um defensor da ortodoxia e da forma correta de se lidar com hereges (e supostos hereges): sem perdão. Para outros, ele é uma figura que, assim como Satanás, caiu da grandeza para o pecado. Levado pela falta de misericórdia, Lúcifer de Cagliari preferia condenar a todos em nome da ortodoxia. Mas não há ortodoxia se a misericórdia for retirada da doutrina. Para Lúcifer de Cagliari, hereges não deveriam ser recebidos (sua obra ‘De non conveniendo cum haereticis’) e jamais perdoados (De non parcendo in Deum delinquentibus).

Nosso dever é escolher que caminho seguir: se estamos no exército de Cristo ou no de Satanás. Se seguimos a ortodoxia de Santo Atanásio ou a suposta ortodoxia de radicais como Lúcifer de Cagliari. Caminhemos com a coragem para expulsar os malditos abusadores e seus cúmplices efetivos, mas com a sabedoria para investigar e a misericórdia para discernir as ações dos que não serviram totalmente ao mal e se arrependeram.

Santo Atanásio, santo da ortodoxia inflexível e da misericórdia que não o permitiu cometer injustiças, rogai por nós.

Em Cristo, entregue à proteção da Virgem Maria,

um Papista

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