A verdadeira libertação

By | 9 de abril de 2019

O método de análise histórica marxista, flagelo de mais de um século, demanda que a história seja analisada através da luta de classes. Dessa forma, todo conflito humano é necessariamente visto apenas como uma luta dos mais pobres, os oprimidos, contra as elites, os opressores. Tal chave de leitura histórica contamina todo o nosso ensino há mais de um século, tendo nos últimos 50 anos sido praticamente a única forma crítica do pensamento acadêmico. Queda de um império? Luta de classes! Uma nação se torna uma potência? Luta de classes! Nada mais é relevante para a visão marxista da história que vem empobrecendo (com o perdão do trocadilho) o entendimento real do mundo.

            Pior do que a deturpação histórica é como a análise marxista da história vem nublando a visão de tantos para o verdadeiro plano de Deus para nós. Essa chave interpretativa da história se tornou uma metodologia teológica em uma das vertentes agressivas da chamada ‘Teologia da Libertação’ (TL). Essa vertente se desenvolveu predominantemente no Brasil. Ao contrário da TL argentina, por exemplo, que não é (ou não era em sua origem) marxista.

            Tal visão levou gente como Ernesto Cardenal, que levou uma bronca pública de São João Paulo II, a dizer: “Cristo me levou a Marx”. Cardenal, como tantos outros que aceitaram essa doutrina, demonstra a profunda corrupção causada por um discurso que faz de Cristo um mero intercessor até a doutrina de Marx. Essa sim, na visão marxista, a redentora do mundo.

            Que ninguém se engane! Não é invenção ou deturpação da TL dizer que ela visa uma nova leitura bíblica. Gustavo Gutierrez, expoente intelectual da TL, declarou em seu livro “Teologia da Libertação: perspectivas”, que a visão marxista era apenas a redescoberta de um tema judaico-cristão tão antigo como o Êxodo.

            Efetivamente, Gutierrez estava chancelando uma leitura de guerra de classes para justificar não apenas o Êxodo, mas toda a interpretação bíblica. Tudo se justificaria pela revolta de uma classe oprimida – os trabalhadores – pela classe opressora – a burguesia – que detém os meios de produção.

            Quem expôs tais diferenças em uma análise magistral da vertente marxista da TL foi o próprio Joseph Ratzinger, em 1984, no documento “Instruções sobre certos aspectos da ‘Teologia da Libertação'”. Esse é um documento oficial da Congregação para a Doutrina da Fé (CDF), não apenas um comentário pessoal: http://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/documents/rc_con_cfaith_doc_19840806_theology-liberation_en.html

            Essa análise já havia sido esboçada na entrevista do então cardeal no tão importante livro “The Ratzinger Report”, do jornalista Vittorio Messori.

            O então cardeal Ratzinger fez bem ao exigir uma postura responsável dos futuros teólogos para que a Bíblia não fosse analisada acriticamente através de uma interpretação humanista e marxista.

            Ter como centro de um modo de vida comunitário o cuidado com os pobres é parte da Igreja desde os seus primórdios, tendo ganhado nova força no medievo com as ordens mendicantes e mais tarde com as reformas da contra-revolução protestante.

            Por outro lado, uma leitura marxista da Sagrada Escritura, com o pobre como cavalo de Tróia para uma constante revolução de classes supostamente chancelada pelo Evangelho, é uma distorção inaceitável e perigosa.

            Um é parte do impulso divino que alimenta a nossa alma e, cooperando com as Graças de Deus, nos leva ao amor ao próximo. O segundo, a leitura marxista, é um chamado a uma revolução na terra e à substituição do Paraíso por um paraíso na terra; de Deus por um falso deus.

            Saindo da visão geral e mergulhando no texto bíblico para um exemplo, examinaremos uma passagem do livro do profeta Jeremias. A história de Jeremias se passa durante os últimos anos do Reino de Judá e segue até a conquista de Jerusalém e as deportações para a Babilônia.

            O capítulo 39 (Jr 39) nos mostra a queda da cidade de Jerusalém, capital de Judá e epicentro da vida do povo de Deus no Templo. Nabucodonosor, rei da Babilônia, ordena que todos os nobres sejam mortos (v.6); a deportação da população (v.9) e, por fim, que seu capitão distribua as terras e vinhedos aos ‘pobres que nada possuíam’ (v.10).

            Se a leitura sob a hermenêutica marxista da TL fosse correta, nós deveríamos supor que:

            – Nabucodonosor é um libertador, um revolucionário que liberta os pobres e os cativos.

            – O rei da Babilônia cumpre um papel fundamental na história da salvação como uma prefiguração de Cristo, que viria trazer um Evangelho de libertação.

            Essa conclusão é absolutamente inescapável sob a ótica marxista da TL. Os problemas dessa conclusão, no entanto, refletem o problema de toda a análise teológica marxista.

            Nabucodonosor não era um libertador, mas um conquistador. Sua estratégia foi simples e eficiente, uma guerra de desgaste desenvolvida em três etapas (três deportações). Foi também um demagogo. Sua falsa libertação dos pobres consistia apenas em dar migalhas aos necessitados em troca de fidelidade. Essas mesmas pessoas seriam igualmente deportadas ou mortas no momento oportuno.

            Por fim, é mister lembrar que a fidelidade que demagogos buscam é a idolatria. Recebendo migalhas, os mais pobres trocavam o Deus verdadeiro pelo falso deus Nabucodonosor.

            Se tudo isso soar familiar, não é mera coincidência. Todo marxista fez (e faz) o mesmo pelo mundo. É a falsa libertação meramente vista sob o olhar da luta de classes.

            Ao contrário da estratégia da falsa libertação, Cristo não propôs uma salvação na terra. O cuidado com os mais pobres é uma obrigação individual e comunitária, não uma luta por uma fantasia da divisão artificialmente igualitária dos meios de produção. É nossa obrigação fazer caridade e lutar por uma sociedade que permita que os indivíduos cuidem de si mesmos e do seu próximo sem uma barreira estatal entre o homem e Deus. Tal barreira é um intercessor artificial entre Deus e o homem, ou seja, um ídolo.

            A inevitável idolatria é o principal problema de uma teologia maculada pela ideologia marxista. Uma sociedade justa é uma sociedade voltada e totalmente ordenada para Deus, uma sociedade que lê a Bíblia como uma história que tem apenas um princípio e fim: Jesus Cristo, caminho, verdade e vida.

            A nossa salvação não se dá na terra. Tampouco as mazelas sociais podem ser curadas, ou mesmo amenizadas, sem Deus. Um Deus que nos garantiu que na terra teríamos aflições. Não só isso, mas que os pobres sempre estariam conosco. Jesus está citando ‘Dt 15,11‘, em que Deus diz através de Moisés: “Nunca faltarão pobres na terra, então, eu te ordeno: abra bem a sua mão ao seu irmão, ao necessitado e ao pobre na terra“.

            Note que o Senhor havia dito um pouco antes (v.4) que não deveria haver mais pobres na terra. Não há contradição, pois é exatamente o que Jesus viria explicar mais de mil anos depois: “sempre há pobres entre vocês, mas vocês não me tem sempre” (Jo 12,8). O ponto aqui é simples: a ordenação de tudo a Cristo!

            Em suma, nós devemos ordenar nossas vidas a Cristo. Apenas dessa forma teremos amor no coração para cuidar dos mais necessitados e criar um ambiente em que nós mesmos cuidamos das nossas vidas e ajudamos o irmão caído. Conduzir a todos pelo exemplo em direção não de um demagogo que distribui migalhas ou usurpa o poder de Deus prometendo que o dará ao povo, mas na direção do Deus verdadeiro.

            Cristo não veio libertar os cativos de cadeias ou da pobreza. Ele não libertou São João Batista da prisão ou desceu São Dimas, o ladrão arrependido, da cruz. A verdadeira libertação é a do pecado, um cativeiro muito pior.

            Todos seremos responsabilizados pelo irmão que não ajudamos. Não basta ação política se ignoramos os irmãos famintos em nossas portas. Porém, acima de tudo, nossa luta é contra o pecado que gera tudo isso, e não contra um sistema que substitui Deus por ideologia.

            É o pecado que nubla a nossa capacidade de amar. A caridade é o amor em ação. Uma sociedade mais justa é apenas a consequência natural da ordenação de tudo a Cristo. Isso não pode ser forçado pela política ou ação revolucionária, que apenas precipitam o homem na idolatria. A única solução é cumprir a nossa missão de levar o Evangelho a todas as nações, vivendo-o como exemplos vivos da ação do Espírito Santo em nossas vidas.

            A única libertação verdadeira é a salvação em Cristo.

            Em Cristo, entregue à proteção da Virgem Maria,

            um Papista

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