A paz segundo Santo Agostinho

By | 30 de janeiro de 2018

A paz de todas as coisas é a tranquilidade da ordem” – Santo Agostinho, em ‘A Cidade de Deus’ (De civitate Dei), Livro XIX, Cap. 13, I.

Ninguém discute o fato de que a paz é um estado desejável. O que se discute sem parar é como alcançar a paz. Até mesmo com a guerra. O que pouco se discute é o que é a paz. Sem responder a isso não é possível responder o resto. A paz é uma consequência, e não um slogan bonito a ser forçado, resultando, com sorte, em uma paz aparente e frágil. Santo Agostinho nos oferece o caminho para a paz, o mesmo caminho que nos leva à Cidade de Deus.

A paz do corpo consiste no arranjo proporcional de suas partes. A paz da alma irracional consiste no repouso harmonioso de seus apetites (instintos), enquanto a paz da alma racional consiste na harmonia entre o conhecimento e a ação. A paz do homem com Deus consiste na bem ordenada obediência da fé à lei eterna. Enquanto a paz entre os homens é um acordo bem ordenado (De Civ. Dei XIX, 13 §1).

Segundo Santo Agostinho, para obter a verdadeira paz, o homem se sujeita a Deus por obediência perante o que é eterno. Uma convicção que o bispo de Hipona deixa clara por toda a sua obra, mas especialmente no testemunho de sua própria vida. A paz veio para ele apenas com a entrega total a Deus. Esse estado de desarmonia e luta contra o Senhor trouxe a ele nada a não ser dor e confusão. Para alguém com a sua poderosa mente, isso significa que ele sabia bem a dor que tinha causado a outros enquanto espalhava o erro, seja pelo mau exemplo ou suas palavras.

Da relação com Deus até a família. Sendo a economia familiar um reflexo da Trindade, Santo Agostinho vê a paz em família da mesma forma, com alguns liderando e outros obedecendo. Mais uma vez, não como um tirano e um vassalo, mas como quem sabe ter qualidades que o outro não possui, e que igualmente o reconhecimento das qualidades complementares no próximo, e a vivência dessa diferença pode resultar na ordem necessária para a paz.

Ordem, segundo Santo Agostinho, é a distribuição das coisas em seus devidos lugares. Em termos sociais, essa distribuição não precisa ser igualitária, mas precisa ser justa, de forma que mesmo o miserável que não conhece a paz da mesma forma que outros, ainda é parte da ordem. Logo, eles também vivem na paz. Alguma intranquilidade eles terão, sem dúvida. É nosso dever, através da caridade, olhar pelos irmãos em necessidade. Mas Santo Agostinho não vê o mundo, a cidade dos homens, como o provedor da felicidade. Apenas em Deus o homem terá felicidade e paz absoluta no amor do Pai. No mundo, os miseráveis ainda fazem parte da proteção da ordem se tudo for distribuído segundo a ordem natural das coisas, e não uma ordem forçada. A situação é ajustada para a capacidade individual e o que cada um trás ao mundo. Sendo assim, ainda há ordem.

Reconhecendo que mesmo os pobres e os doentes fazem parte da ordem natural das coisas, a paz ainda reina, pois fora dessa relação não há ordem e a paz seria impossível. Nesse caso, numa sociedade desordenada mesmo quando diz buscar ordem, todos seriam miseráveis e não haveria paz.

Passando da relação com Deus, pela família e até a sociedade, Santo Agostinho nos mostra que é possível, embora improvável, haver vida sem dor. Mas não é possível haver dor sem vida. Da mesma forma, é possível haver paz sem a guerra, mas não é possível haver guerra sem haver paz, ou a guerra seria uma forma de vida, e não um estado transitório.

Voltando seus olhos a Deus, Agostinho prepara a sua conclusão sobre essa questão. Seguindo esse raciocínio, existe uma natureza em que o mal não pode existir, mas não há uma natureza em que o bem não exista. Logo, nem mesmo a natureza do demônio é maligna, pois ele foi criado anjo. O que acontece é a perversão da natureza pelo pecado. O demônio não segue a verdade, mas mesmo ele não pode escapar do julgamento da Verdade. Satanás vive, mesmo contra a sua vontade, inserido na tranquilidade da ordem, pois não pode escapar daquele que ordena todas as coisas (§2).

A conclusão é inescapável. É pela perversão do pecado que, assim como o demônio, a corrupção se alojou em nossa natureza outrora livre dessa mancha. É pela corrupção do pecado que aceitamos a desordem. No reflexo de nossa desordem, o mundo não encontra a paz. Apenas a paz em nossas almas pode trazer a paz ao mundo, e apenas Deus pode trazer paz às nossas almas.

Deus não puniu o demônio pela sua natureza, mas pela corrupção que ele abraçou e o mal que ele cometeu e comete. Da mesma forma, é pela nossa insistência em não nos voltar a Deus e buscar a cura para a nossa alma que somos punidos. Nossa natureza reflete a imagem e a semelhança do Senhor, e Ele nos quer como parte da Sua família. Basta voltarmos as nossas paixões e intelectos a Ele, sabendo que a família, a começar pela divina, possui uma ordem.

A paz na terra não será plenamente alcançada. A paz verdadeira só existe, finalmente, na natureza que é perfeita e infinitamente justa e ordenada, Deus. Apenas na ‘Cidade de Deus’ há paz. Na ‘cidade dos homens’, a paz relativa é alcançada mantendo o olhar em Cristo como o único caminho a Deus.

A falácia da ‘justiça social’ pela via política (nada errado em se fazer algo, mas sem tornar ‘justiça social’ um slogan de um tipo de idolatria política) não traz a paz, enquanto a paz em Cristo pode trazer ordem tal como ela é possível na terra. Não se força a natureza do homem em um simulacro de paz, uma falsa ‘Cidade de Deus’ na terra. Apenas a harmonia que a submissão a Deus traz pode ordenar o homem e conduzi-lo à paz. Inevitavelmente, no caminho para a santidade está a melhora da situação de todos, pois a nossa submissão a Deus se mostra antes em nossas obras, e a caridade é a primeira delas. A caridade não é apenas a esmola, mas a evangelização e o cuidado com a alma. Obviamente, o cuidado com o corpo doente e necessitado do próximo fazem parte da caridade, mas eles são apenas o reflexo da entrega a Deus, perceba a pessoa ou não.

A devida ordenação que traz a paz começa e termina em Cristo. É admitindo que existe uma ordem natural, e não subvertendo a verdade com ideologias de falso igualitarismo, que encontraremos a paz. O homem e a mulher não são a mesma coisa, e apenas juntos para viver o diferente pode haver a harmonia da ordem. Da mesma forma, os homens não são iguais e vivem pelo que produzem. O mais forte ajuda o mais fraco, e os que caíram são levantados pelos que ainda estão de pé ou já se levantaram. Sem a possibilidade de queda não há amor, pois o amor ao próximo não se prova retirando dele a sua liberdade. Nem para substitui-la por uma pretensa plenitude na terra. Só há amor se você puder negá-lo. Ao negá-lo, arrepender-se. Arrependido, se reconciliar. Reconciliado, viver a verdade em fé e obras.

Nada na ‘cidade dos homens’ nos trará a paz, a não ser ordenar nossas vidas a Deus. Mesmo assim, essa paz não é a verdadeira, aquela vivida apenas na Cidade de Deus, a Jerusalém Celestial. O que podemos ter certeza de que NÃO nos trará nada a não ser a dor é o distanciamento de Deus e a substituição da ordem natural por uma falsificação criada pelo homem. Não importa quão belo o embrulho, uma falsificação ainda é uma cópia imperfeita do original. Como disse São Tiago: “a religião pura e sem mácula aos olhos de Deus Pai é esta: visitar os órfãos e as viúvas em suas aflições, mas resguardar-se da corrupção deste mundo” (Tg 1,27).

Somos peregrinos a caminho da Cidade Deus, tudo o que temos que fazer, como escreveu J.R.R. Tolkien, é saber o que fazer com o tempo que nos é dado. Essa viagem não é uma de “auto descobrimento”, mas uma jornada para descobrir o amor de Deus, a única coisa que traz a verdadeira paz, pois o Senhor revela quem somos e nos envia em missão.

Por fim, o mesmo Tolkien escreveu que o título da jornada é “lá e de volta outra vez”, pois a jornada das grandes histórias é um reflexo da peregrinação que narra Santo Agostinho. É a jornada que começa e termina em Deus, e apenas nEle, apenas na Cidade de Deus, estamos realmente em casa. Apenas Deus, “alfa e ômega, primeiro e único, começo e fim” (Ap 22,13), Pai perfeito e amoroso que enviou Seu Filho para sentir todas as nossas dores, para morrer e atirar sobre si mesmo os nossos pecados, pode nos mostrar a paz. E Ele já mostrou! Naquele que nos disse tudo para que nEle tenhamos paz, pois apesar das aflições passageiras, Ele venceu o mundo (Jo 16,33)!

Santo Agostinho, rogai por nós.

Em Cristo, entregue à proteção da Virgem Maria,

um Papista

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