O Trovão Joanino

By | 13 de setembro de 2017

O título deste artigo deveria ser algo como “O Trovão Joanino e a mentira da divinização tardia do Jesus humano pela Igreja”, mas as pessoas parariam de ler já no título. Eu o escrevo aqui para descrever o tema geral deste artigo.

Desde que o mau uso do método de crítica histórica como base exegética se tornou o padrão para a interpretação bíblica, de tempos em tempos nós vemos a repetição de uma fórmula já batida, mas nunca eliminada: “Jesus era um homem com uma bela mensagem nos Sinóticos e se torna Deus apenas nos escritos Joaninos”. O que isso quer dizer? Sejamos socráticos e vamos definir os nossos termos.

No final do século XVIII, Johan Griesbach publicou uma ‘sinopse’ dos Evangelhos. Colocando lado a lado os escritos e anotando em que Evangelhos as passagens se repetiam, Griesbach detalhou quando e onde as repetições aconteciam, e como elas aconteciam predominantemente nos 3 primeiros Evangelhos. Daí o nome de “Sinópticos”, pela síntese dali em diante usada como base para o estudo bíblico. Ou seja, os três primeiros Evangelhos têm muitos elementos em comum em sua narrativa.

Nasce, então, o “problema sinótico”. Voltando um pouco no tempo, sabemos que Santo Agostinho foi fundamental para definir canonicamente a ordem dos Evangelhos. Com o questionamento do problema na era moderna, os pesquisadores passaram a se interessar novamente pela ordem e o uso dos escritos de um evangelista para o outro. Diversas teorias foram concebidas, a mais famosa sendo que Marcos teria escrito o primeiro Evangelho, e os outros teriam expandido com base em seus escritos. O que por si só desafia a lógica, já que é mais simples fazer uma síntese do que expandir, mas essa não é a discussão no momento.

No século  XIX (o século que para o bem da teologia já deveria ter acabado…), esse instrumento é definitivamente colocado em um patamar único no estudo bíblico com a ajuda da interpretação literária como novo instrumento de exegese bíblica. O importante para pensadores como Heinrich Holtazmann passa a ser o fato de que, segundo a lógica vigente, se essas passagens se repetem, logo, alguém escreveu isso primeiro e os outros copiaram. Ou melhor, apenas os três primeiros, pois o Evangelho segundo São João é muito diferente dos outros. A lógica, por mais capenga que seja, se tornou o padrão do estudo bíblico moderno e os Evangelhos Sinóticos passaram a ser examinados como um bloco amorfo de narrativa montada por escritores que copiavam entre si.

Em um caso grave do que os psicólogos chamam de “projeção”, os autores que receberam mais atenção projetaram suas crenças pessoais na pesquisa bíblica e a coqueluche moderna passou a ser a teoria de que, já que o Evangelho de São João é diferente, ele tem que ser uma produção planejada por uma comunidade (Joanina) que tentava introduzir uma nova cristologia. Para eles, as evidências da síntese dos primeiros três Evangelhos revela um Jesus que não é Deus, mas um homem com grande coração e uma bela mensagem. Apenas mais tarde, a comunidade iniciada por São João teria inventado uma narrativa de divindade e cria-se, então, o Cristo que é Deus.

Para os adeptos dessa teoria, João não escreveu um tratado teológico que em nada modifica os outros três, mas apenas passa a visão de um discípulo que enxergava mais longe e em termos profundamente teológicos. Não! Para esse movimento, a idéia de uma narrativa meticulosamente planejada está em primeiro lugar. Seguindo essa idéia, embora isso não seja dito com essas letras, o livro de São João é uma construção usada para inserir uma nova visão e, de facto, criar uma religião. Não para completar uma visão completa do Messias, mas uma intenção quase institucional.

Ridículo como isso seja, essa idéia é praticamente a base para toda interpretação bíblica moderna. Ou melhor, modernista, já que algo moderno nada tem de ruim enquanto seguir a Tradição e o bom senso. Já o modernismo é a inserção de ideologias para a substituição do que a Igreja aprendeu e defendeu através da sucessão apostólica.

Trocando em miúdos: para grande parte dos exegetas modernistas, os Evangelhos Sinóticos apresentam um Jesus apenas humano, e o Evangelho segundo São João acrescenta tardiamente (propositalmente) a divindade de Cristo. Para eles, pouco importa as muitas citações sobre o Reino de Deus, ou a identificação sem qualquer dúvida sobre a identidade do messias, as chaves do Reino, a transmissão do poder de perdoar pecados (exclusivo de Deus), morte e ressurreição etc. Estão convencidos de que apenas no Evangelho escrito por São João (ou uma “comunidade joanina”) é que Jesus se tornou Deus.

Essa terrível interpretação trouxe infelizes consequências para a exegese bíblica, e só muito mais tarde a reação. Falaremos primeiro das consequências imediatas.

De tempos em tempos, um livro é publicado com uma “grande descoberta”, uma informação “nova e bombástica sobre a identidade de Cristo”, talvez ainda o anúncio do desmascarar de “mais uma invenção da Igreja sobre Cristo” etc. São livros como o do conhecido autor Bart Ehrman, professor de estudos religiosos (um mistério em si mesmo) que foca, claro, no estudo do “Jesus histórico”. O tal “Jesus histórico” é o foco no mau uso da crítica histórica como instrumento exegético.

Os livros de Ehrman sobre o “Jesus histórico” são estudos capengas que escolhem um ângulo e escamoteiam o resto. Livros escritos com uma conclusão antes da pesquisa. Até mesmo o escopo é errado. Para provar o que diz, Ehrman subtrai passagens fundamentais. Outros livros do mesmo tipo focam no “Jesus humano” e tentam montar o caso do homem sábio e preocupado com a sociedade, e não com a salvação das almas e o Reino de Deus. Invariavelmente focando nos Evangelhos sinóticos de forma mais uma vez seletiva.

Ainda que você desconte tudo o que puder da leitura dos sinóticos, uma passagem em especial derruba completamente o argumento. O capítulo 11 do Evangelho de São Mateus é impossível de ser harmonizado com o argumento do “Jesus histórico” que é apenas humano. Nele, Nosso Senhor confirma sua divindade de várias formas. A primeira é atestando que João Batista é o profeta que vinha anunciar a vinda do Messias, Ele. Mas uma passagem em especial perturbou desde o começo os adeptos da visão estritamente histórica de Cristo. Em ‘Mt 11,25-27‘, Jesus descreve como Ele é o Filho de Deus Pai, e apenas Ele conhece o Pai e que ninguém conhecerá o Pai senão pelo Filho. A mesma passagem se repete em ‘Lc 10,21-22‘.

Sem conseguir justificar essa passagem com a sua teoria, os exegetas incapazes de ir além da visão histórica crítica cunharam um nome para essa passagem: o “Trovão Joanino1. Poucas vezes na história da teologia bíblica algo tão cínico foi declarado de cara tão limpa. Incapazes de acomodar essa passagem em sua teoria, eles passaram a afirmar que isso “só pode” ser algo Joanino que “caiu como um raio” entre os escritos sinóticos. Algo que não deveria estar ali, mas está. Eles apenas não conseguem explicá-la. Uma passagem que eles preferem crer ter sido “um lapso”, e criar uma explicação que não se encaixa nas evidências (o texto em si). De fato, a solução óbvia é a mais simples: Mateus e Lucas jamais imaginaram um Jesus que não fosse o Cristo, o ungido de Deus, o Messias, totalmente homem e totalmente Deus.

Mark Goodacre, pesquisador inglês formado em Oxford e professor nos EUA, que tem o problema sinótico como área de pesquisa, em seu artigo ‘Trovão Joanino ou Semente Sinótica’ (Johaninne Thunderbolt or Synoptic Seed), expõe como ‘Mt 11,27‘ e ‘Lc 10,22‘ são formados por 27 palavras gregas idênticas, a maior sequência desse tipo nos sinóticos. Para resumir, seguindo a lógica interna usada nesse tipo de estudo, o autor diz que isso exclui a influência de uma terceira fonte, demonstrando que a comunicação é apenas entre Mateus e Lucas.

Toda essa discussão pode ser útil para a academia, ainda que tenha rapidamente se tornado uma dessas discussões intermináveis que pouco acrescentam à teologia, mas apenas aos departamentos e pesquisadores se sustentarem com mais um estudo que não muda nada, apenas gira a roleta mais uma vez.

Para os fiéis, teólogos ou não, importa perceber algumas coisas. Em primeiro lugar, a honestidade intelectual demanda que as conclusões sigam as evidências. Até hoje não se provou nada diferente de que, quando muito, Mateus ou Lucas (e acrescente aí Marcos para fechar o bloco sinótico) utilizaram seus textos como fonte de edição. Nada prova que seus testemunhos são apenas livros de retalhos de outras fontes. Um apóstolo viu e descreveu o que viu, no máximo se utilizando do texto do outro para editar e melhorar algumas passagens.

Mais importante. O “Trovão Joanino” é uma forma de tentar harmonizar o que não se harmoniza: os Evangelhos Sinóticos NÃO tratam Jesus apenas como um homem! Inventar que essa passagem é um lapso joanino, um invasor inexplicável que com um nome engraçadinho explica a si mesmo como algo fora de contexto, é de um cinismo criminoso. O que essa passagem prova, apenas, é que TODOS os Evangelhos possuem a mesma cristologia, ou seja, descrevem o mesmo Cristo que a Igreja afirma em seu Credo e em sua Sagrada Tradição.

Ângulos diferentes? Sem dúvida! Algumas mais próximas que as outras? Mateus, Marcos e Lucas tinham uma visão mais próxima, e João era um teólogo de primeira grandeza que via tudo com outros olhos? Sem dúvida! Mas se o “Trovão Joanino” prova alguma coisa, ele prova mais do que os adeptos do “Jesus histórico” conseguem lidar ou se manter confortáveis. Ele prova o que a Igreja Católica ensina e que, infelizmente, parece soterrado sob uma montanha de verborragia acadêmica que não prova nada além do que a Mãe Igreja já dizia: o Cristo da Tradição e dos Pais da Igreja é o Cristo dos Evangelhos. Todos os quatro!

A conclusão é a mesma de sempre: ouça a Santa Mãe Igreja e a sua Sagrada Tradição. Daí tem que vir toda pesquisa acadêmica, pois daí, e apenas daí, vem a verdade.

Em Cristo, entregue à proteção da Virgem Maria,

um Papista

1 – Karl von Haze, em 1876 em seu “A História de Jesus” (Geschichte Jesu), deu um nome igualmente cínico para essa passagem: um “meteoro caído do céu joanino” (ein Aerolith aus dem johanneischen Himmel gefallen).

6 thoughts on “O Trovão Joanino

  1. Douglas Henrique

    Mais uma vez, excelente! Aprendi muito! E olha que eu ouço padres defender essa visão sinóptica (obviamente sem falar em ‘Jesus Histórico’, mas fica nas entrelinhas). Você foi esclarecedor.
    Obrigado.

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  2. Sandro Medeiros

    Parabéns pelo excelente artigo, Papista! Muito edificante e alimenta fartamente as defesas de católicos leigos como eu. Obrigado! Off Topic: Por gentileza, você poderia me recomendar algum livro que mostrasse a importância da religião cristã no desenvolvimento da civilização ocidental? Queria estudar um pouco para poder rebater quando as pessoas criticarem a Igreja Católica. Muitos artigos seus já me ajudaram bastante, mas eles apenas aumentaram/provocaram minha sede de conhecimento sobre a história de nossa Santa Igreja (seus artigos seriam como um pequeno gole de um vinho espetacular, do qual anseio por mais, muito mais). Minha cidade tem poucas bibliotecas e as que temos carecem de bons títulos nesta área (na verdade, não vi nenhum até agora). Obrigado e fique com Deus.

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    1. Papista Post author

      Olá, Sandro! Muito obrigado pelas palavras.

      Sobre os livros, eu começaria pelo ótimo livro: “Como a Igreja Católica contruiu a civilização ocidental”, do Thomas Woods. Você encontra nas grandes livrarias ou por qualquer grande site de compras de livros. É um antídoto contra as distorções, e uma grande homenagem à Igreja. Tudo escrito por um grande acadêmico. Espero que ajude.

      Fique com Deus!

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  3. Caio Augusto Limongi Gasparini

    Excelente, como tudo que o blog produz. Parabéns e que Deus o abençoe!

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