Sobre o latim na Igreja.

By | 20 de abril de 2017

Em 1962, São João XXIII publicou uma Constituição Apostólica chamada ‘Veterum Sapientia: De Latinitatis Studio Provehendo’ (Para a Promoção do Estudo do Latim)1.

O documento apresentou uma bela explicação sobre o papel do latim na Igreja, e o seu lugar entre tantas línguas faladas pelo Povo de Deus no mundo. Sua Santidade destacou ainda três aspectos importantes (comento, não transcrevo):

Catolicidade (universalidade). A língua latina não pertence a um único povo, mas é uma língua universal como é a Igreja. – parágrafo 5 do documento

Imutabilidade. Além de universal, a língua da Igreja deve ser imutável. Línguas mudam, são assimiladas ou se perdem. O latim perdura em seu caráter extemporâneo. – parágrafo 6

Nobreza não-vernacular. A Igreja fundada por Cristo deve manter uma língua que exerça um fascínio especial por sua nobreza, majestade e qualidade não-vernacular. Ela é a língua consagrada pelo uso da Santa Sé, e deve ser considerada um tesouro que ensina aos jovens o valor da tradição católica. – parágrafo 7

Em preparação para o Concílio Vaticano II, o Santo Padre achou por bem deixar claro que o latim não deveria se perder. É realmente um documento de um homem de profunda visão, como todo o breve e incrível pontificado dele comprova.

Daí por diante, o documento enumera provisões para o estudo do latim, como a obrigação dos bispos de reforçar a necessidade do latim no ensino católico; a seleção de professores de latim; a restauração do currículo tradicional católico, perdido no ensino público estatal; teologia e demais ciências sagradas ensinadas, ainda que gradualmente, em latim; e a instauração de uma ‘Academia Latina’, um órgão que auxiliaria os institutos de ensino e teria, ela mesmo, um corpo docente e de pesquisa. Por fim, um ‘syllabus’ da língua latina deveria ser criado para ajudar no aprendizado e ser uma ferramenta para o episcopado e instituições de ensino.

O ensino do grego bíblico é lembrado e igualmente estimulado. Algo que já havia sido enfatizado antes, juntamente com o ensino do hebraico bíblico, pelo Papa Pio XII.

Um documento como esse não pode ser esquecido ou desprezado. Exatamente porque reconhece a importância do latim no aprendizado bíblico e teológico. Um dos motivos para isso é muito mais prático do que se pensa. No século XX, a utilização das fontes primárias para a tradução das Escrituras, ou seja, em hebraico, aramaico e grego, ganhou novo impulso. Porém, algumas questão se tornaram inevitáveis sobre as fontes. Quais são as fontes legítimas e autorizadas pela Santa Sé?

Nossas fontes primárias são códices como o ‘Codex Vaticanus’, o ‘Codex Sinaiticus‘ (Aleph), ‘Codex Alexandrinus‘ etc. O problema é simples: todas essas fontes são do século IV ou V. O que significa que, obviamente, alguém como São Jerônimo utilizou fontes que se perderam. Fontes que foram aceitas e consagradas pela autoridade inegável da Sucessão Apostólica. Logo, a Vulgata pode e deve ser considerada uma fonte válida de estudo. No mínimo, para correção e forma do texto, em casos em que as outras fontes primárias apresentam diferenças.

Não é possível ignorar o valor do texto de São Jerônimo para se identificar e corrigir problemas nas fontes hoje à disposição. Um exemplo simples é o livro de Tobias (Tobit). Acusado pelos protestantes de conter erros históricos, e por isso ser o exemplo de um livro que não poderia ser canônico, o livro possui, na verdade, um problema de fontes. Bem entendido: não as fontes do autor primário do livro, mas das nossas fontes para traduzir e recompor a obra! Farei um estudo melhor qualquer dia, mas basta dizer que nossas atuais fontes contém informações desencontradas sobre nomes e datas apresentados pelo autor do livro de Tobias. Não é um problema do livro, mas da nossa capacidade de reconstruí-lo. É aí que se torna fundamental reconhecer o valor da Vulgata, e qualquer outro manuscrito latino da época, como fonte legítima. Se não como fonte única, mas para corrigir e formatar o texto.

Além de fonte bíblica, é fundamental destacar a importância do latim como fonte dos documentos tradicionais que dialogam com a Sagrada Tradição (aquilo que tem a ver com a Revelação), como os documentos da Igreja primitiva e a Patrística.

Dado o valor prático, seja no ensino como na pesquisa, os valores citados na Constituição Apostólica ‘Veterum Sapientia’ não podem ser ignorados. O que está implícito ali é a beleza. A beleza é a ante-sala do que é bom e verdadeiro. É aquilo que domina a alma e a leva ao sublime; que estimula a alma e a mente, nos levando a estudar com mais gosto e respeito. Você respeita e preserva o que te mostra o sentido do que é eterno, e o latim tem essa capacidade. A história comprova isso para além de qualquer dúvida.

Ainda que nada disso retire o valor da missa em língua vernácula, o desdém de alguns pelo latim se tornou um problema grave na Igreja. A feiura se tornou praticamente o padrão de algumas celebrações litúrgicas, e o desprezo pelo eterno leva a distorções ou “liberdades” exegéticas que, ao invés de libertar, aprisionam corações e mentes no erro e no feio.

Diante desse problema, o Papa Bento XVI, na esteira da compreensão do processo de degradação que abateu a Igreja, deu novo impulso ao uso do latim. Além da liturgia, que deve sempre ser a base da vida cristã, Sua Santidade criou, através do Motu Proprio ‘Latina Lingua2, o instituto chamado ‘Pontificia Acadamia Latinitatis‘ (Pontifícia Academia de Latinidade), sob o Pontifício Conselho para a Cultura, para cumprir o que foi desejado por São João XXIII e estimular uma renovação do ensino e cultura da língua latina.

Se o latim não é parte da Sagrada Tradição, ele é parte fundamental da tradição da Igreja; fonte importante de estudo e pesquisa; e fonte de beleza, catolicidade e a imbatível sensação de imutabilidade, que ajuda os católicos a se sentirem sempre em casa. Você deve sentir que faz parte de uma história jamais interrompida e que se mantém em sua missão de penetrar cada vez mais nos mistérios sagrados, mas sem destruir o que foi consagrado. A evolução do estudo e certas adaptações não são ruins, mas devem ser alicerçadas em verdades eternas e imutáveis. E jamais ser uma ruptura que cause estranheza.

Dando continuidade ao empenho dos seus antecessores, o Papa Francisco entrega esse ano o Prêmio das Academias Pontifícias3, no valor de 20.000 euros, para trabalhos sobre o latim. Os temas foram a recepção das grandes obras latinas (Latinitas Christianas) nas eras medieval e moderna; e propostas metodológicas para o ensino do Latim. Tanto para pesquisadores como instituições.

É mais um grande, belo, e tão necessário incentivo ao latim. Principalmente a discussão metodológica. Temos muitos jovens se encantando pelo latim, e até mesmo dando aulas. Uma benção para todos os católicos. Que eles saibam que seu trabalho não é ignorado e tem recebido ajuda. Novos métodos, novas publicações, e o renascimento do sentimento de tradição, que aquece a alma e nos dá novo ânimo.

O latim não pode ser ignorado pelos católicos. Ele não torna ninguém mais santo e não pode substituir completamente as fontes primárias. Tampouco é necessário acabar com a liturgia em língua vernácula. Nenhum católico deve aprender latim apenas para “voltar ao passado” e se imaginar em um tempo em que o cristianismo seria, supostamente, perfeito. Isso não existe! A Igreja na história é formada por homens, e os erros e pecados sempre atormentaram a Igreja de sempre. Não se aprende latim para viver no passado, mas para observá-lo com reverência, admirar sua beleza, e caminhar confiante de hoje até a eternidade.

O latim não é Tradição, mas é tradição. Por si só, ele não é Sagrada Tradição porque não dialoga com a Revelação, mas faz parte da tradição da Igreja como exemplo do respeito e louvor humano pelo divino*.

O latim é fundamental por todos os motivos citados antes, que vão da beleza à tradição. Seja para o aprendizado pessoal, seja como opção litúrgica. Daí por diante, um ensino bíblico de qualidade, fundamentado nas grandes obras e nos grandes autores.

São João XXIII, rogai por nós.

Em Cristo, entregue à proteção da Virgem Maria,

um Papista.

 

1 – https://w2.vatican.va/content/john-xxiii/la/apost_constitutions/1962/documents/hf_j-xxiii_apc_19620222_veterum-sapientia.html

2 – http://w2.vatican.va/content/benedict-xvi/pt/motu_proprio/documents/hf_ben-xvi_motu-proprio_20121110_latina-lingua.html

3 – http://www.cultura.va/content/cultura/it/collegamenti/acc-pont/premio.html / http://www.cultura.va/content/dam/cultura/docs/pdf/accademie/bando_en.pdf

* apêndice: existe uma enorme confusão sobre Tradição e tradição. Tradição (T maiúsculo), como eu disse no artigo, é aquilo que dialoga, interpreta, está ligado à Revelação. É o que chamamos de Sagrada Tradição. Enquanto tradição (t minúsculo), é a tradição criada pelos homens, que não dialoga diretamente com a Revelação, e pode ser alterado. Agora, poder ser alterado não implica em sofrer alterações. E certamente não alterações drásticas, sem sentido, ou que rompam com a história da Igreja. Ou pior, que cause confusão aos fiéis.

O uso do latim é um bom exemplo. A missa em língua vernácula não é uma quebra da Sagrada Tradição, já que a língua, em si, mesmo o belo latim, não tem relação com a Revelação. O que seria uma quebra da Tradição, por exemplo, seria retirar a Liturgia da Palavra ou a Liturgia Eucarística.

A preservação do latim na liturgia é parte da tradição (t minúsculo) católica, o que é muito importante. É de beleza única, ajuda no contato humano com o divino, e dialoga com a riqueza histórica da Igreja.

Ou seja, não há motivo para a briga e troca de acusações (em geral, nos rincões obscuros da ignorância internética) sobre tal missa ser herética ou não por causa da língua. Nem pelas diferenças de rito. Apenas se as partes que dialogam com a Revelação fossem retiradas. Toda modificação deve ser feita com cuidado e respeito. Obviamente, tivemos muitos abusos desde a transição para o vernáculo e algumas mudanças no rito. Abusos que vem sendo combatidos desde o papado de São João Paulo II. Mas a missa vernácula, em si mesma, não é um problema. Muito menos a missa em latim. Há espaço para as duas.

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