Distributismo, Mondragon, Milly Lacombe e o Comunismo

By | 9 de setembro de 2015

Chesterton - 3 alqueires e uma vaca

É inevitável que, em vários momentos da nossa vida, sejamos presenteados por um amigo com ‘aquele texto que refutará tudo o que dizemos’. Como dizem por aí: “só que não”! Recebi um desses textos semana passada, como traquinagem de um amigo meu. É um conjunto de erros de distorções prá lá de curiosas. Parte da premissa de que o comunismo deu certo em algum lugar, mas que não é onde você pensa. Para chegar até ali, a autora acusa a todos de não ter lido Marx, ou não entendido, e então nos ‘explica’. Sua explicação sobre o que ‘de verdade’ Marx quis dizer é mais do mesmo. Distorção e erros grotescos de interpretação. Alguns chegam a fazer o leitor pensar se ela acusa os outros do que faz, ou seja, não ler as principais obras de Marx. Aliás, ela diminui e muito o peso do “Manifesto Comunista“, tratando-o como um simples panfleto que Marx escreveu sob encomenda e, segundo ela, “com apenas 30 anos”, como se nessa idade qualquer autor ainda fosse um moleque, e isso lhe desse um passe-livre. Isso, diz ela, porque a obra contradiz o resto do seu pensamento. Marx, na verdade, teria escrito coisas completamente diferentes em “O Capital“. Não só isso é bobagem, como contraria até mesmo os maiores fãs e especialistas marxistas, como Hobsbawn e tantos outros que não só vêem continuidade como exaltam o “Manifesto”. Apenas os revisionistas tentam esse malabarismo para continuar dizendo que ‘o verdadeiro marxismo nunca foi tentado’, que é exatamente o que a autora quer provar, no final das contas. Ainda segundo ela, Marx era um defensor da liberdade e desenvolvimento do indivíduo. Isso é um erro grotesco, senão uma mentira pura e simples. Segundo a autora, Marx via a igualdade como uma idéia burguesa. Isso é apenas metade da história. Marx identifica claramente na obra o motivo pelo qual, segundo ele, o individualismo não funciona. Ele dá até nome aos bois: tecnologia; desenvolvimento. Incapaz de acompanhar o desenvolvimento tecnológico, o homem precisa eliminá-lo para que esse não tire o seu lugar na cadeia produtiva. Ora, desenvolvimento tecnológico é fruto exclusivo da liberdade individual, liberdade de pensamento, e da criatividade que somente desses elementos pode surgir. Não é apenas no tal panfleto juvenil que seria o “Manifesto Comunista” que Marx fala sobre planificação e o poder do estado. Em “O Capital” também, ora! Tal planificação seria inevitável para conter o desenvolvimento de idéias que gerariam o avanço tecnológico. Além do fato óbvio que a distribuição igualitária do excesso da produção só poderia acontecer com a presença do estado como ordenador. O mesmo estado que, segundo Marx, cuidaria para que a liberdade individual, parte de um delírio burguês, fosse devidamente diluída em uma centralização e domesticação do impulso criativo em prol do coletivo. Ênfase no controle e força do estado para isso. Essa imposição sob a brutal batuta do estado resultaria em um mundo belo e em que todos saberiam dividir tudo sem a necessidade do estado. A idéia marxista confunde caridade, aprendizado, e conscientização, com reflexo condicionado. No comunismo, uma utopia de caridade vira uma utopia de animais adestrados. De qualquer forma, esse segundo momento não tem nada com o que estamos discutindo. Ele só viria depois da imposição estatal, que não tem nada com o que a autora do texto entendeu das obras marxistas.

Enfim, é um apanhado de erros que visa repetir um revisionismo marxista nada novo: a idéia de que Marx não foi compreendido; que nenhuma das atrocidades geradas pela implantação de suas idéias é culpa dele ou do comunismo; mais de cem milhões de pessoas mortas pelo comunismo antes não era culpa de seus autores em ditaduras comunistas, porém, depois de ser impossível negar tudo, a nova verdade revisionista é que aquele comunismo era, no fundo, fraude. E, claro, se todos entendessem Marx como a autora, o comunismo “de verdade” seria implementado e todos seriam felizes. Dessa vez, jura ela, com ampla liberdade, desenvolvimento individual, cooperação, amor, carinho etc. Para provar seu ponto, a autora parte do erro para o absurdo. Eu já li muita besteira comunista, e muita distorção, mas o que a autora faz é muito além disso. Resta saber se é desonestidade, burrice, ignorância absoluta do que fala, ou sabe-se lá o quê! Volto a isso mais adiante.

Ao final do texto, descubro que a autora é uma jornalista chamada Milly Lacombe. Seu currículo inclui colunas para uma revista chamada “TPM”, e um tempo como comentarista de esportes em um canal da TV a cabo. E foi em um programa da TV em que ela era comentarista que ela deu uma prova de sua irresponsabilidade. Anos atrás, durante um programa de TV, a jornalista acusou um jogador de futebol de um crime. No caso, falsificar uma assinatura para pressionar seu clube a lhe dar um aumento. Jornalistas comentam, criticam, opinam, analizam, investigam etc. Mas é preciso ser muito irresponsável para acusar alguém de um crime sem ter nenhuma possibilidade de provar. Eu não pretendo aqui discutir pessoas, mas idéias. Porém, esse fato nos dá uma pista para entender por que a pessoa fala sem saber ou pensar. E é essa irresponsabilidade e absoluta ausência de comprometimento com os fatos (não podendo eliminar a hipótese de brutal ignorância ou distorção proposital) é que levam uma pessoa assim a citar o que ela chama de “o lugar onde o comunismo deu certo”. O “lugar” por ela citado é a ‘Corporação Mondragon’, no País Basco.

Para entender a Mondragon, ao contrário do que a jornalista tenta fazer parecer, você tem que olhar para um movimento que é, por natureza (e explicitamente), anticomunista. Fundada por um padre, a Mondragon tem por base a Doutrina Social da Igreja Católica. Tal doutrina tem suas bases na patrística e sua idéia mais bem articulada séculos depois por Santo Tomás de Aquino. Mas sua articulação como doutrina foi feita no final do século XIX, na encíclica “Rerum Novarum”, do Papa Leão XIII. A encíclica é um dos documentos mais importantes dos últimos séculos da Igreja, e define uma via que não é nem o capitalismo (naquela época entendido principalmente com o impacto da revolução industrial e suas consequências no trabalho), nem o comunismo. Décadas depois, os autores Hilaire Belloc e G.K. Chesterton, definem o que seria conhecido como Distributismo, sob as diretrizes da ‘Rerum Novarum’. As bases econômicas do Distributismo são:

– a propriedade privada (a arte da democracia, como dizia Chesterton);

– uma organização trabalhista em um modelo de guildas;

– cooperativas de crédito no lugar dos bancos;

– e direito de concorrência (leis anti-trust).

Em algumas correntes distributistas, o crédito social faz parte da base econômica, para garantir uma pulverização de poder político e econômico para os indivíduos, e não corporações.

As bases sociais são:

– a família;

– subsidiaridade;

– fim da seguridade social, que faz do homem dependente do estado;

– e a promoção de uma sociedade de artesãos, o que não é o mesmo que primitivismo, mas a idéia de que mesmo o desenvolvimento tecnológico deve estar nas mãos dos produtores como donos.

Apenas por essa breve e resumida explicação é possível entender por que é impossível ser distributista e marxista. A propriedade privada e a família são elementos primários e indispensáveis ao distributismo. Esses mesmos elementos são vistos no marxismo ou como inimigos do povo, ou um pedantismo burguês que deve ser derrubado, como a família tem sido. O modelo de guildas é inteiramente pensado sobre a propriedade privada, em que o homem é dono de suas terras e de seu trabalho, e a união não é como a de sindicatos, mas uma união dos próprios trabalhadores, sem representantes com alguma autoridade para falar pelos trabalhadores, e que, inevitavelmente, se envolvem em política. Nada disso passa remotamente perto do comunismo. Embora o Distributismo tenha tido adeptos tão diferentes como Chesterton e Dorothy Day, sua base é sempre a mesma, as idéias definidas pela Igreja Católica em sua Doutrina Social.

A Corporação Mondragon é um grande exemplo sim, mas do Distributismo em ação. A Mondragon é uma cooperativa, mas não como se entende hoje em dia, com um modelo de cooperativismo semi-hippie como o que é geralmente relacionado com a palavra cooperativa. A Mondragon é um conjunto de trabalhadores em uma propriedade privada. Todos são donos. Porém, outra distinção óbvia deve ser feita aí. No comunismo, todos são donos (segundo eles) para que ninguém seja dono. No distributismo, todos são donos de um pedaço. As decisões são tomadas pelas guildas ou diretamente pelos funcionários. A Mondragon segue a idéia do desenvolvimento individual e criativo, o que proporciona seu próprio desenvolvimento tecnológico, o que seria impensável no comunismo. Se a Mondragon decide produzir fornos elétricos, eles assim o fazem. Se decidirem que seus fornos estão superados, eles mesmos atualizam toda sua produção, como qualquer grande empresa numa economia livre. A Mondragon é a prova de que o Distributismo é viável, e o modelo funciona há décadas.

G.K. Chesterton, um dos maiores frasistas que o mundo já viu, e homem capaz de definir as coisas mais complexas em poucas palavras, chamou o Distributismo de “Três Alqueires e Uma Vaca”. Sua caricatura nesse ambiente é o símbolo deste site. E o Distributismo é o modelo aqui apoiado. Um modelo advindo do profundo entendimento do marxismo e do capitalismo, e como nenhum deles serve ao homem perfeitamente. No entanto, o marxismo não foi tratado com o mesmo peso que o capitalismo. As idéias de Marx e seus seguidores foram condenadas e devidamente delineadas como contrárias à dignidade humana. Gente como Milly Lacombe pode delirar, mas não pode tentar se apropriar de uma idéia anticomunista para provar que o comunismo deu certo. Seria cômico se não fosse, literalmente, trágico. Os corpos estão aí para provar. Não deu certo, e não adianta tentar de novo. Muito menos com as mesmas mentiras de sempre para dar nova roupagem ao mal.

Se ela e outros gostaram do Distributismo, deveriam abraçá-lo. Mas de verdade. Com tudo o que ele significa e demanda, e não distorcendo e tomando-o de assalto. O tal goleiro processou (e ganhou) a irresponsável jornalista. A Mondragon não o faz porque não teve o mesmo azar que eu, e assim escapou de ler um artigo dela. Sorte da corporação basca, que nunca leu que todos os seus esforços de não ser comunista foram chamados de… comunistas. Sorte dela que nunca leu que todo o seu estudo, liberdade, e inovação, foram refutados por uma distorção pueril do que ela passou décadas tentando não ser.

Não posso recomendar artigos como os de Milly Lacombe. Mas posso e recomendo mais da real Doutrina Social da Igreja, mais Chesterton, mais Belloc, e mais Distributismo. Até mesmo os de uma feminista de verdade, como Dorothy Day. Pelo menos ela sabia do que estava falando.

Em Cristo, entregue à proteção da Virgem Maria,

um Papista.

2 thoughts on “Distributismo, Mondragon, Milly Lacombe e o Comunismo

  1. GILSON WAKSMAN

    Texto brilhante, perfeitamente explixativo demontra com exatidao e senso oportuno Como somos enganados por nossas palavras

    Reply

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