O bom cristão.

By | 31 de março de 2015

The Bad Catholic's Guide to wine, whiskey and song The Bad Catholic's Guide to the Catechism

“Eu sou um bom cristão, faço tudo o que Deus manda”. Frases assim, ou parecidas, como “sou um bom católico”, eu já ouvi muitas. São até comuns. Em geral, usadas em alguma discussão. Muito usadas quando a pessoa realmente cometeu algum erro, ou falou alguma bobagem etc. Seria como uma defesa, em que se arroga uma suposta santidade como argumento de autoridade. Santidade porque se você realmente vive como Deus ensina ser o bom caminho, você está no caminho para a santidade. Será que você está mesmo nesse caminho?

Mas o que é ser um “bom cristão”? É curioso como algumas respostas são bem mais fáceis de se entender num contexto mais leve, e como a comédia é especialmente útil. É útil porque é direta. Te afeta mexendo com seus brios e brincando com a sua lógica de forma que se torna impossível não se ver refletido ali. O escritor americano John Zmirak, autor de livros, roteiros para TV e cinema, além de inúmeros artigos para revistas e sites católicos ou não, tem uma série de livros chamada “The Bad Catholic’s Guide” (O Guia do Mau Católico). São livros engraçados com dicas tanto para coisas sérias, como para coisas mais sérias ainda. Desde bebidas e antigas canções para reuniões etílicas, até o catecismo, os sete pecados capitais, e um guia para a boa vida. Os livros podem chocar algumas pessoas, e parecer fortes para o devoto excessivamente voltado para si mesmo. Zmirak é um escritor irônico, e os livros não são o que você espera, seja lá o que você espera deles. Mesmo assim, são católicos e ortodoxos!

No caminho da nossa fé sempre existem pedras. É preciso entendê-las, e não permitir que a simples presença delas nos faça desistir. Uma dessas pedras costuma aparecer quando você se sente no auge da sua fé. Você se converteu ou se reencontrou; está estudando; rezando; cumprindo suas obrigações e fazendo aquele algo mais por sua fé e sua igreja. E a tal pedra pode ser exatamente o orgulho da nova fase. Ou a descoberta de que algo está errado com ela. Muitos largam tudo nessa hora. Afinal, você se dedicou pra valer, não? Como poderia ser essa a recompensa? Descobrir que ao invés de santo, você estava mais para um pavão? Ou que tudo o que você fez ainda era pouco, quando você já se via cruzando a linha de chegada para entrar no céu? São golpes corriqueiros numa fé consistente, saudável na realidade. Porque a verdadeira fé é testada. A verdadeira fé é a certeza de que, no fim, Deus torna tudo certo e bom Nele mesmo.

A melhor maneira para entender o que está acontecendo, e como passar pelos momentos dificeis, é exatamente entender por que essa série de livros de John Zmirak têm esse nome, “O Guia do Mau Católico”. Ela se chama assim porque não existem bons católicos! “Católico” e “bom” dificilmente dão as mãos. É uma metáfora importante a ser aprendida.

Nós somos católicos porque somos ruins! Nós buscamos algo que nos torne “menos piores”, e nos dá a esperança de algo melhor apesar de nós, e não por nossa causa. Nós não estamos construindo um mundo melhor, nós estamos estragando o mundo, e torcendo para que possamos entender o mínimo para não destruí-lo e, quem sabe?, ajudar um pouco a Palavra de Deus em nossa estabanação. Ao contrário de seitas gnósticas e falsas religiões, em que pessoas passam por iniciações por serem “especiais”, ou “escolhidas por isso ou aquilo”, nós buscamos a Deus e Sua Igreja por saber os nossos defeitos e erros. Como eu comentei em outra postagem, a Igreja não me deu um sentimento de culpa, e por isso eu sou assim. Não! Eu tenho erros e por isso a procurei. Eu sei quem eu sou, e sei que não posso fazer nada sozinho, sem Ela.

É um princípio teológico, e não aparentemente coerente. Quer dizer, “o bom cristão” é uma impossibilidade em princípio, não em prática. Em sua epístola aos Romanos, São Paulo diz: “Não há nenhum justo, não há sequer um” (Ro 3, 10). Algumas vezes “justo” é traduzido simplesmente por “bom”, numa simplificação. Um pouco depois ele cita um trecho de um Salmo (Sl 13): “Todos se extraviaram, todos juntos se corromperam” (Ro 3, 12). O que é uma verdade simples e cristalina não precisa explicação. Mas a contextualização ajuda. São Paulo falava não só do exclusivismo judaico e seus rituais, como também do fato de que nada disso permite ao homem se salvar sozinho, por seus atos. Porque, no fundo, não há ninguém bom o bastante para fazer isso sozinho. Apenas Deus pode salvar alguém que aceita Sua Salvação e trabalha para, no máximo, ajudar a si mesmo nesse percurso.

Em outras passagens bíblicas, Jesus, São Paulo e tantos outros elogiam e enaltecem certas pessoas. Seria isso um contrassenso? E como alguém é santo se ninguém é bom? São duas coisas completamente diferentes. Como eu disse antes, uma delas é uma definição de senso comum. A outra é uma definição teológica. Muitas pessoas são boas, viveram vidas de santidade, ou pelo menos jamais fizeram aparente mal a alguém. Essas pessoas merecem nossos elogios e fidelidade. Algumas realmente são santas, e merecem a honra que a veneração é. Não é adoração, é veneração! A mesma que nós damos ao homenagear alguém que assim merece (o assunto, aliás, merece uma postagem própria). Mas nenhuma dessas pessoas, não importa quão santa ela foi, conseguiria se salvar sozinha, sem Deus. Essa é a diferença! Nesse ponto, não existe o bom cristão!

Somos todos maus cristãos, mesmo sendo boas pessoas. Esse é o entendimento. É irônico, mas carregado de substância. É um lembrete, um convite para uma vida ainda mais rica em fé e caridade, pois, sozinhos, mesmo que levando uma vida aparentemente de “bons cristãos”, não podemos fazer nada. Todo dia será uma oportunidade para se fazer mais e melhor. As pedras não podem te tirar do caminho, podem apenas te incomodar. Isso é bom. Incomoda o bastante para nos despertar. Quem sabe até nos levar a um caminho melhor ainda, se lembrarmos que jamais seremos bons o bastante. Por que vemos algumas pessoas agradecendo contratempos? Porque são, muitas vezes, essas pedras que podem nos ajudar.

Quando você ouvir alguém dizer, mesmo que de forma carinhosa, ou querendo ensinar algo, que “o bom católico” faz isso ou aquilo, reflita sobre isso com mais atenção. Há vários recados ali incluídos. Sim, você deve seguir um caminho. Mas você nunca será bom o bastante para não precisar melhorar, ou se lembrar de sua pequenez.

Poucos escritores foram tão claros em seu catolicismo como J.R.R. Tolkien. Sua obra mais famosa, “O Senhor dos Anéis” é uma das grandes historias religiosas dos últimos séculos. Ele fez o possível para retirar da história elementos práticos do nosso dia-a-dia, assim como tornar as metáforas menos óbvias. Mas nem por isso menos claras em seu sentido. Na história, a grande mulher dos elfos, Galadriel, honrada por todos os seus pares e outros mais, se passa por um teste ao ser tentada pelo Anel de Sauron. Após resistir à tentação, ela diz, numa das passagens mais belas do livro (e bem recriada em sua adaptação para o cinema): “eu passei no teste. Eu vou diminuir. Irei para o Oeste, continar sendo Galadriel”. Ora, quem nos tempos atuais pensaria que é uma coisa boa diminuir, se apequenar? Mas é exatamente isso que trouxe grande felicidade para Galadriel nessa passagem, e que pode trazer tanta alegria a todos, até mesmo em tempos de modernismo e individualismo exacerbados. O sentimento de Galadriel é aquela certeza que evita tantas frustrações e tanto sofrimento. A certeza de que o que se vê é o que nós somos: imperfeitos, difíceis, mas lutando, tentando. Se acreditar perfeito em si mesmo, em um patamar de bondade e virtudes acima da realidade, capaz de escrever sozinho o seu caminho para a felicidade, é o caminho para a tristeza e a frustração. Entenda e aceite sua pequenez com alegria! É o caminho para melhorar e ser feliz. Você é um Hobbit, não um gigante, não um elfo vivendo com pompa e glória. Eu sou um mau católico, e assim preciso me entender para ter alguma chance de salvação.

Somos todos maus católicos, maus cristãos, e isso deveria te confortar. Estamos no caminho, mas ele pode sempre melhorar. Às vezes parece um passo para trás, mas é apenas uma reflexão, uma pausa para se retornar ao caminho. E o caminho, nós sabemos, é Jesus Cristo!

em Cristo, sob a proteção da Virgem Maria,

um Papista.

One thought on “O bom cristão.

  1. Marcelo Massao

    Olá Mateus, realmente encontramos irmãos que se consideram mais católicos do que o Papa. Citando São Paulo: “Portanto, quem pensa estar de pé veja que não caia.” (1 Cor 10, 12).

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