O Reno desagua no Tibre.

By | 27 de janeiro de 2015

O Concílio Vaticano II (CVII) é um dos momentos mais importantes da Igreja no século XX. Seu legado é imenso e belo, mas não sem polêmica. Liberais e tradicionalistas foram contra o Concílio antes, durante, e depois. Não há um lado justo, nem um único espectro político-doutrinária com restrições ao Concílio em si. Em geral, isso é um bom sinal.

Não pretendo neste artigo explicar os documentos do Concílio, seus meandros teológicos e doutrinais. Isso é material para muitos artigos. Ou melhor, para alguns livros. Vou me concentrar na origem do CVII, a batalha por ele, seus reflexos e suas consequências.

O que é um concílio? Assim como um concílio leigo, um concílio nada mais é que um encontro dos membros de um grupo, nesse caso, da Igreja Católica, para decidir sobre assuntor diversos. Tanto doutrinários, dogmáticos, como pragmáticos. Existem concílios provincianos, em que os bispos de determinada jurisdição se encontram para tomar decisões regionais, e existem os concílios ecumênicos, em que todos os bispos, patriarcas, cardeais, o Papa e religiosos participam. Concílios não têm sempre a mesma função, podendo um discutir dogma, e outro apenas questões doutrinárias, como evangelização etc. Não se pode entender um concílio apenas com base em outro.

Assim como qualquer reunião, seja de condomínio, empresa ou governo, as emergências e problemas costumam ser os grandes motivadores desses encontros. Muitos concílios foram convocados para combater heresias que vinham crescendo em determinada parte do mundo. O objetivo era formar um consenso sobre a doutrina, estudar e, depois de formada uma opinião definitiva com base nas escrituras e Tradição, emitir uma decisão definitiva. Caso as pessoas que então se encontravam em heresia não aceitassem a decisão, tanto uma punição quanto uma maneira de evangelizar corretamente o povo era discutida. Livros fundamentais, como o Catecismo, vieram da idéia de explicar para os fiéis a verdadeira e sólida doutrina. Dessa forma, eles não ficariam desarmados frente a movimentos hereges. E estariam preparados para ouvir (e filtrar) os religiosos que difundiam heresias, muitas vezes dentro das suas paróquias, como acontece até hoje.

É importante frisar que nenhum concílio inventa doutrina, lei, nada. Nunca aconteceu, e não pode acontecer. Concílios apenas interpretam e jogam nova luz em discussões sobre a Lei Divina, contida nas escrituras e Tradição. Novos tempos levam a novas dúvidas, que muitas vezes levam a novas interpretações entre leigos e religiosos. Nem sempre as dúvidas e as reflexões são boas ou em sintonia com o evangelho e a Tradição da Igreja. Esse é o objetivo de um concílio: analizar e discutir essas questões, sob a proteção do Espírito Santo, para que a verdade prevaleça.

O Concílio Vaticano II é único em alguns pontos:

– a maior participação de leigos, principalmente historiadores e teólogos, sob funções como “peritos” teológicos, ou ajudando bispos em áreas que eles podem não ser especialistas, até mesmo coisas como falar outros idiomas.

– O diálogo ecumênico com a participação de não-católicos.

Mas qual era a principal motivação do concílio? Para isso, é preciso explicar um pouco quem era o Papa que o convocou. Ele vale diversos livros, e certamente alguns artigos no futuro, mas focarei agora no seu papel para o concílio.

A vida de Angelo Giuseppe Roncalli, na Igreja e fora dela, é incrível demais para se fazer justiça aqui com um resumo. É suficiente saber alguns detalhes, como ele ter sido filho de uma família de camponeses muito pobres, mas que, ao contrário do que muitas vezes é passado sobre ele em hagiografias ou filmes, ele não era um simplório. Ele era um homem extremamente simples, sim, mas uma coisa não tem nada a ver com a outra. Sua vocação parecia ser o magistério, e ele foi logo deslocado para auxiliar bispos e importantes estudiosos em sua juventude.

Em uma dessas guinadas da vida, ele se tornou um diplomata da Igreja, por vontade do Papa Pio XI, que reconheceu seu trabalho. Alguns viam seus postos como alguma punição, mas ele sempre os encarou com serenidade. Ele teve muito sucesso por onde passou. Foi embaixador na Bulgária, onde nenhum católico colocava os pés há anos, e que vivia sob constantes guerras internas. Saiu de lá tendo forjado laços de amizade com os mais duros e anticatólicos cristãos ortodoxos, e é lembrado como um santo por seu povo.

O mesmo se deu na Turquia, aonde ele salvou milhares de judeus dos nazistas, e saiu também com fortes ligações com os muçulmanos e ortodoxos.

Roncalli foi o homem que, em Paris, conseguiu o que ninguém havia conseguido: convencer o General Charles de Gaulle, depois da guerra, a confiar em alguém e a manter bispos que ele queria expulsos da França por sua conhecida desconfiança.

Foi feito Cardeal de Veneza e, já idoso, lá preparava seu túmulo para o futuro. Em outra surpresa do Espírito Santo, foi escolhido sucessor de Pedro, e escolheu o nome de João XXIII. Para muitos, sua escolha foi apenas política, fruto de um impasse entre liberais e tradicionalistas, e entre blocos políticos europeus. João XXIII seria um papa de transição. Já idoso, pensavam eles que ele duraria pouco e não faria nada demais. Quando ele morresse, o cenário político da composição do Colégio de Cardeais poderia ter mudado, e alguém escolheria o ‘seu papa’. Essa é a versão cínica. A história nos diz que não foi bem assim, ainda que exista esse lado político. A história também nos mostra como eles estavam enganados sobre ele.

O tal papa de transição promoveu algumas das maiores revoluções da Igreja, para espanto geral. Convocou um concílio ecumênico em meio a tumultos doutrinários e políticos. O que ninguém entendia é que era exatamente por isso que ele via a necessidade de um concílio! O século XX havia passado da metade, e duas grandes guerras haviam acontecido. A modernidade dava as caras, e movimentos e experiências doutrinais, a maioria desastrosa, pipocavam. Se existe alguma coisa de profético na história da Igreja é o concílio e sua visão de futuro. A incrível dificuldade da Igreja em lidar com a modernidade teria sido ainda pior sem o concílio. Infelizmente, nem tudo que se prova bom no final tem um começo, ou mesmo uma implantação, suave.

O Papa João XXIII já sofria de câncer no começo do concílio, anos depois de sua convocação. Os preparativos levaram algo como três anos. Aí incluídos os temas, a organização etc. O primeiro problema se dá exatamente sobre os temas.

Muita gente que não ficou satisfeita com o que via e julgava ser, no final do século XX, “culpa do CVII”, adaptou a biografia do Papa para que ele parecesse um liberal, até mesmo um ultra-liberal. Nada pode ser tão distante da verdade. Ele era, pessoalmente, um conservador. E amigo pessoal de alguns dos eminentes conservadores de sua época. A diferença é que ele era amigo de todos, e tinha trânsito livre entre conservadores e liberais. Era muito amigo de conservadores como o Cardeal Ottaviani e Marcel Lefebvre, que ficou famoso anos depois por suas diferenças com os futuros papas e a interpretação do concílio. Porém, na época, a experiência missionária e catequética do Arcebispo Lefebvre fez com que João XXIII o colocasse como um dos principais elaboradores dos planos das discussões iniciais do concílio. Planos esses, é bom deixar claro, que o papa aprovou. Quem deseja mudar a história e tornar o papa um liberal e inimigo de conservadores como Lefebvre, pode consultar suas biografias e mesmo o website da SSPX, a sociedade fundada depois pelo arcebispo, em que o respeito por João XXIII é demonstrado.

Há que se entender que o Vaticano, até aquele momento, estava acostumado a conduzir a discussão. Não por motivos “imperiais” como o acusam, mas porque alguém tem que traçar uma base para as discussões, assim como um “esquema” a ser seguido, para evitar confusão e tempo perdido. Foi aí que os problemas começaram.

O livro mais importante sobre os motivos das brigas no CVII foi escrito por um padre e jornalista belga chamado Ralph M. Wiltgen, chamado, em inglês, “The Rhine Flows Into the Tiber” (O Reno desagua no Tibre). O título é uma ilustração perfeita do que aconteceu. Wiltgen acompanhou o movimento que vinha, em sua maioria, dos bispos alemães, suíços e austríacos (por isso o movimento do rio Reno). Esse grupo era formado por bispos liberais, ou por bispos que, levados por esses últimos, queriam a qualquer custo mais voz e participação em todas as instâncias do concílio. Logo de cara, eles forçaram a eliminação do esquema proposto pelo Vaticano, e fizeram que tudo começasse do zero, sem qualquer planejamento. Logo após essa primeira difícil sessão (o CVII foi dividido em sessões, com intervalos de até um ano entre elas), João XXIII morre. Seu sucessor, o Papa Paulo VI, já foi considerado por alguns o homem mais preparado para ser papa da história. Título que merece ser dividido com Pio XII na história moderna do papado. Montini, o Papa Paulo VI, conhecia profundamente os meandros da burocracia vaticana e seus personagens principais, tendo sido ele mesmo um deles. Além de ter um ótimo relacionamento com a maioria dos bispos e a cúria. É apenas com o poder de organização e perseverança do Papa Paulo VI que o CVII avança.

O que se vê ao final do concílio é a maior discussão teológica e doutrinária dos últimos séculos da Igreja. A maioria das pessoas opina sem jamais ter lido a transcrição das sessões. Eu li uma pequena parte (é material que, francamente, eu duvido que muitas pessoas no mundo já tenham lido todo), e já são dezenas de páginas de profundas discussões. Discussões que vão além do que a maioria das pessoas pode compreender, e mesmo especialistas precisam estar na ponta dos cascos para participar. Entre os especialistas alí incluídos estão alguns dos maiores teólogos e filósofos do mundo, como o então Cardeal Ratzinger (futuro Papa Bento XVI), Karol Wojtyla (futuro Papa São João Paulo II), Karl Rhaner, Karl Barth e muitos outros.

Não foi uma queda de braço política. Ela existiu, mas muito mais no planejamento das discussões e na organização das comissões específicas, do que nas discussões em si. Essas nem poderiam ser conduzidas politicamente. Eram complexas demais. Claro, existiam liberais e conservadores, mas temos que ter a fé de que o Espírito Santo cumpriria sua promessa de impedir desvios graves na doutrina e Tradição. Como bem disse o filósofo Ralph McInerny, ele mesmo longe de ser um liberal, se eu deixar de acreditar na proteção do Espírito Santo ao concílio, é melhor eu deixar de ser católico.

Dito isso, é importante entender o que o Cardeal Ratzinger comentou anos mais tarde no livro que ficou conhecido como “O Relatório Ratzinger”: não foi o Concílio que promoveu erros, mas um “falso espírito do concílio”, uma versão ruim e muitas vezes maliciosa que era (e de vez em quando ainda é) usada com a desculpa de que o CVII teria aberto portas para qualquer tipo de interpretação ou experiências. Em geral, as maiores aberrações liberais que se pode conceber. Como tudo o que os teólogos da Teologia da Libertação criaram e inundaram a Igreja de barbaridades, sempre com a desculpa de que o CVII lhes deu autorização. É mentira! Mas até hoje esse falso espírito do concílio existe e é usado por alguns.

Assim como um dia foi preciso (e sempre será) estudar novamente os Pais da Igreja, é necessário ir aos textos do Concílio e ver o que eles dizem de verdade! É preciso separar o concílio dos efeitos que interpretações erradas ou maliciosas causaram.

O Papa São João XXIII, que quando convocou seu concílio o chamou de “aggiornamento”, que seria algo como uma “atualização”. Erra terrivelmente quem pensa que a idéia era atualizar as doutrinas. Esse erro também é usado para pregar suas falsas doutrinas. A verdadeira idéia era atualizar a maneira como a Igreja passa suas verdades imutáveis para um mundo novo, que se comunica e muda numa velocidade estonteante. Somente assim poderemos colher os frutos, os de verdade, de tão belo “aggiornamento”.

São João Paulo II foi o papa da correção de curso, o homem que lutou pelo CVII, para corrigir os erros e desvios causados por maus teólogos e modernistas infiltrados. Bento XVI foi o último representante dessa geração, e necessário para finalizar a correta implantação. Se eles conseguiram? Claro que sim! Temos todo o material que eles deixaram para a correta interpretação do CVII com toda a sua riqueza. Se nós vamos reconhecer o verdadeiro CVII e entender sua beleza e necessidade? Aqui eu parafraseio o já citado grande tomista Ralph McInerny, que disse que se nós não reconhecermos a grandeza do CVII, isso não quer dizer que o Espírito Santo estava de folga, ou que o Concílio falhou. Isso vai apenas mostrar quão profunda é a nossa queda, e como nós não percebemos nem as coisas boas que Deus nos dá, como o CVII.

Eu digo que nós já lutamos por quase 50 anos pelo Concílio. É a hora de vivê-lo!

Em Cristo, entregue à proteção da Virgem Maria,

um Papista!

4 thoughts on “O Reno desagua no Tibre.

  1. Janaira

    Papista, você conhece o livro “Concílio Vaticano II, uma história nunca contada” ? O que acha dele?

    Reply
    1. Papista Post author

      “Uma história nunca escrita”, não é? Do Roberto de Mattei. Eu tenho o livro. Vale a pena.

      Obrigado. Fique com Deus!

      Reply
    1. Papista Post author

      Olá, Marcelo. Tudo bem? A Paz de Cristo.

      O livro que eu cito no artigo é sobre os bastidores, mas a sua dúvida é boa. Eu recomendo dois livros (não conheço nenhum em português, infelizmente):

      – “The Drama of Vatican II” – Henri Fesquet

      – “My Journal of the Council” – Yves Congar

      Existem outros diários do Concílio. Alguns um tanto enviesados, se tornando mais opiniões e visões sobre determinados grupos. Esses dois são relatos mais objetivos do que aconteceu.

      Muito obrigado. Fique com Deus!

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