Liberalismo econômico e a ética cristã.

By | 7 de janeiro de 2015

O livro mais importante sobre o Concílio Vaticano II é o que ficou conhecido em inglês com o título (adaptado) de “The Ratzinger Report” (O Relatório Ratzinger). O livro é uma coletânea de entrevistas do então Cardeal Joseph Ratzinger ao jornalista italiano Vittorio Messori. As entrevistas foram dadas durante um dos períodos mais conturbados da Igreja, quando o CVII já deveria ter sido implantado, mas, na verdade, o que se via era uma versão deturpada crescendo e fazendo estragos pelo mundo. Ratzinger, sempre preciso, define o que vinha acontecendo na Igreja pelo mundo, especialmente nas Américas, como “o falso espírito do Concílio Vaticano II”. Eu voltarei ao assunto teológico em outras postagens próprias para isso, mas agora quero focar nas declarações do futuro Papa Bento XVI sobre economia e ética.

Uma das coisas mais chatas para quem realmente estuda e pesquisa é ver alguém que você está cansado de conhecer e estudar ter suas idéias deturpadas por citações fora de contexto. Ver o homem que ficou conhecido como o inimigo número um da “Teologia da Libertação”, e o foco do ódio de todo teólogo liberal em geral, ter uma citação sua usada para fazê-lo parecer um “teólogo liberal anti-capitalista” é o fim da picada. No livro citado anteriormente, o então cardeal fala exatamente sobre a doutrina marxista travestida de teologia, e comenta Marxismo e Capitalismo. Mas tudo dentro de um contexto específico. Em primeiro lugar, há que se lembrar que ele fala o tempo todo como um teólogo e um cristão. Ele fala sobre doutrina, e sobre os efeitos éticos dessas teorias econômicas. O contexto é sempre esse: a ética cristã em relação às aplicações econômicas de um lado, e do outro a tentativa de substituir essa mesma ética cristã com teorias que deveriam ficar no campo econômico.

Se por um lado a praga do marxismo vinha sendo usada por alguns como um substituto até mesmo para a teologia, a resposta do lado do liberalismo econômico veio representada por Ayn Rand e seus seguidores. Que Rand é uma resposta ao marxismo é quase inútil dizer. Ela dedicou sua vida a isso. O grande problema de Ayn Rand, curiosamente, é um paradoxo. O Marxismo é uma forma de pensar a sociedade, e uma forma da forçar a sociedade a pensar uniformemente. Com todas as implicações sociais, filosóficas e, claro, econômicas, que isso traz.

Enquanto o mundo vinha aplicando o Marxismo, mas fingindo tentar confiná-lo à uma teoria econômica em oposição ao Capitalismo, Rand percebeu o óbvio, que o Marxismo, para alguns, apenas se passa por teoria econômica, mas se pretende um modo de vida. Ao contrário de outros pensadores, Rand usa o liberalismo econômico para criar a sua própria vertente de ética social. Ou seja, assim como o Marxismo, o Objetivismo (nome dado por Rand para sua teoria) também tinha como ponto de partida uma teoria econômica. Nos dois casos, é a partir de uma visão de carência econômica que surgem duas teorias filosóficas. Ou pseudo-filosóficas. Nos dois casos, a grande dificuldade é exatamente começar o desenvolvimento a partir de teorias que, por si só, dependem de toda uma estrutura filosófica. Ou seja, todo o desenvolvimento filosófico das duas teorias são eternos tampões. Não são pensamentos que partem dos sentidos, da observação, de um desenvolvimento filosófico sólido e capaz de responder normalmente aos questionamentos. Não são projetos filosóficos, mas teorias vindas de um pensamento econômico com tons filosóficos. Teorias em que você encaixa um princípio filosófico aqui, e quando ele balança, você cola outro ali. Usando o senso comum, é como você tentar montar o aparelho que você encomendou. É muito mais simples fazê-lo do começo, com algumas instruções, pensando e planejando cada passo. É muito mais complicado quando te chamam pra começar já a meio caminho andado, sem ter pensado e entendido o começo, e ter que agora encaixar partes que não se parecem mais com as das instruções. Por esse e outros movitos, o Objetivismo tem sérios problemas teóricos. É querer forçar outras teorias na sua, adaptando-as para comprovar sua superioridade sobre o Marxismo como sistema ético completo. Seus maiores erros são justamente filosóficos, e saltam aos olhos como erros de quem tenta agrupar teorias diversas para dar sustentação teórica. Metafísica, epistemologia, ética… todas essas áreas apresentam problemas no Objetivismo. Mesmo alguns liberais (econômicos) vêem erros nas definições de Rand. Uma leitura cuidadosa da evolução do pensamento dela sobre seu Frankentein ético mostra a colcha de retalhos. Ela muda e adapta coisas contraditórias, quase em um desespero teórico para provar que é possível fazer do liberalismo econômico uma base crível para ética social.

Com tudo isso, mesmo o liberalismo econômico sendo muito superior ao Marxismo na área econômica, o Objetivismo, a tentativa mais famosa de tornar isso um sistema filosófico completo, não cumpre seus objetivos!

Esse é o ponto que Ratzinger faz em uma das entrevistas do livro, embora ele não cite Rand ou qualquer pessoa ou pseudo-filosofia especificamente. A tentativa de fazer do liberalismo um sistema ético completo falhou fragorosamente. Quando Ratzinger disse que “No plano moral, o liberalismo econômico cria seu equivalente, o permissivismo”, ele está falando de ética. Isso é fácil de comprovar, não só pela obra de Rand, mas pelas consequências imediatas da tentativa de provar a superioridade moral do capitalismo sobre o comunismo, como se isso fosse um imperativo categórico. No campo moral, a idéia de que o capitalismo, ou o liberalismo econômico, são suficientes em si mesmos para uma base ética e moral da sociedade, criou uma sociedade permissiva, materialista e individualista. Principalmente da década de 60 em diante, o consumismo é estimulado como um contraponto ao comunismo. Da mesma forma, a liberdade como absoluto (individualismo desmedido), também é estimulada. Nos dois casos, de forma quase provocadora contra os países que viviam sob o câncer comunista. Hoje nós colhemos os frutos dessas experiências desastrosas.

Se no âmbito econômico não há dúvida de que o comunismo é apenas uma chaga, algo que contradiz nossa individualidade e nossa dignidade, também não deve haver dúvida que nem o marxismo, nem o capitalismo, podem ser a base para o que está além da economia. Nenhum dos dois serve como base moral ou ética. Essa base, como Ratzinger aponta com precisão, é a ética cristã. Qualquer pensamento econômico tem que estar atrelado à ética cristã para funcionar. Já passa da hora de resgatar nossas bases cristãs se quisermos um mundo em que nossa dignidade e individualidade podem ser respeitadas e colocadas em uso como caminho para uma vida melhor; em que o indivíduo possa se dedicar ao que é seu, seja material, familiar, ou espiritual; fazendo assim a verdadeira economia, oikonómos, a regra e administração da sua casa. O homem é o economista, em seu sentido primário: o administrador da sua casa, um núcleo familiar, um dom divino por ser retrato do amor Trinitário. E são esses dons recebidos de Deus que nós devemos usar em nossa casa, para depois olhar para os nossos vizinhos ao lado, passando pelos nossos alqueires, nossas vacas…

Em Cristo, entregue à proteção da Virgem Maria,

um Papista.

One thought on “Liberalismo econômico e a ética cristã.

  1. mmassao

    Excelente artigo, parabéns !
    Sobre a deturpação a respeito do CVII, deixo um recorte do discurso do Papa Bento XVI ao Clero de Roma:
    “Agora quero acrescentar ainda um terceiro ponto: havia o Concílio dos Padres – o verdadeiro Concílio – mas havia também o Concílio dos meios de comunicação, que era quase um Concílio aparte. E o mundo captou o Concílio através deles, através dos mass-media. Portanto o Concílio, que chegou de forma imediata e eficiente ao povo, foi o dos meios de comunicação, não o dos Padres. E enquanto o Concílio dos Padres se realizava no âmbito da fé, era um Concílio da fé que faz apelo ao intellectus, que procura compreender-se e procura entender os sinais de Deus naquele momento, que procura responder ao desafio de Deus naquele momento e encontrar, na Palavra de Deus, a palavra para o presente e o futuro, enquanto todo o Concílio – como disse – se movia no âmbito da fé, como fides quaerens intellectum, o Concílio dos jornalistas, naturalmente, não se realizou no âmbito da fé, mas dentro das categorias dos meios de comunicação actuais, isto é, fora da fé, com uma hermenêutica diferente. Era uma hermenêuticos política: para os mass-media, o Concílio era uma luta política, uma luta de poder entre diversas correntes da Igreja. Era óbvio que os meios de comunicação tomariam posição por aquela parte que se lhes apresentava mais condizente com o seu mundo. Havia aqueles que pretendiam a descentralização da Igreja, o poder para os Bispos e depois, valendo-se da expressão «Povo de Deus», o poder do povo, dos leigos. Existia esta tripla questão: o poder do Papa, em seguida transferido para o poder dos bispos e para o poder de todos, a soberania popular. Para eles, naturalmente, esta era a parte que devia ser aprovada, promulgada, apoiada. E o mesmo se passava com a liturgia: não interessava a liturgia como acto da fé, mas como algo onde se fazem coisas compreensíveis, algo de actividade da comunidade, algo profano. E sabemos que havia uma tendência – invocava mesmo um fundamento na história – para se dizer: A sacralidade é uma coisa pagã, eventualmente do próprio Antigo Testamento. No Novo, conta apenas que Cristo morreu fora: fora das portas, isto é, no mundo profano. Portanto há que acabar com a sacralidade, o próprio culto deve ser profano: o culto não é culto, mas um acto do todo, da participação comum, e deste modo a participação vista como actividade. Estas traduções, banalizações da ideia do Concílio, foram virulentas na prática da aplicação da reforma litúrgica; nasceram numa visão do Concílio fora da sua chave própria de interpretação, da fé. E o mesmo se passou também com a questão da Escritura: a Escritura é um livro, histórico, que deve ser tratado historicamente e nada mais, etc.”

    “http://w2.vatican.va/content/benedict-xvi/pt/speeches/2013/february/documents/hf_ben-xvi_spe_20130214_clero-roma.html

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